Sunday, July 17, 2005

comunicação feita no seminário "juventude em foco: o uso indevido de drogas"


Boa tarde, eu me chamo Tiago Ribeiro e tô aqui representando um movimento nascente em Porto Alegre, que é o movimento Princípio Ativo - por uma nova política de drogas. Esse movimento vem aqui apresentar a defesa dos direitos humanos da pessoa usuária de drogas e a defesa de uma nova política de drogas, principalmente no que se refere à maconha. Essa nova política de drogas se pauta na percepção de que a lógica criminalizante, a lógica intervencionista, que exerce um poder compulsório sobre a vida do usuário (seja pela via da criminalização do uso, seja pela da medicalização do usuário), essa lógica não pode funcionar porque não tem norma, não tem regra que funcione realmente só na base da coerção. Nesse sentido, adotar políticas para o usuário de drogas é um erro, ao passo que adotar políticas com o usuário de drogas me parece algo muito mais válido e com maiores possibilidades de êxito. Não acredito em argumentos que desqualifiquem a capacidade intelectual do usuário, como foi feito aqui anteriormente.
Então o que eu queria tentar oferecer aqui, nesse tempinho que me reservaram, é um outro modo de se olhar pro fenômeno do uso de drogas e pra isso é fundamental que se pense em uso não problemático de drogas e não só em abuso de drogas. No que se refere à maconha, me parece absurdo, por exemplo, negligenciar o potencial terapêutico dessa planta, o que já é realidade em outros países [nesse momento, tiago falou sobre os casos da espanha e do canadá].
Senti falta, na abordagem integrada feita aqui, da perspectiva das humanidades, notadamente das Ciências Sociais e da Antropologia. Essas disciplinas se preocuparam em ouvir usuários de drogas e compreender o sentido que eles dão para o uso de drogas e os contextos nos quais esses usos se desenvolvem.
Quando eu me refiro, aqui, a uso não problemático de drogas, eu tô pensando nos trabalhos de cientistas sociais como Gilberto Velho, Howard Becker e edward Mac Rae, que nos apontam pra usos de psicotrópicos que não são, em si mesmos, negativos. Esses autores nos lembram que é a sociedade que atribui sentido às coisas.
muito do que se considera como sendo um malefício provocado pela substância também já foi apontado por esses pesquisadores como sendo, muitas vezes, fruto do tratamento social dado a esse uso [aqui, tiago lembra do exemplo da depressão, que tantas vezes é atribuída ao uso de maconha].
Então, será que as drogas são esse bicho de 7 cabeças que a nossa cultura pinta? Lembro aqui que se usa drogas há milênios, que todas as sociedades buscaram a alteração da consciência, o êxtase, a experiência transcendente por meio do uso de drogas. Isso sempre fez parte da esfera social. E aqui nós compreendemos muito bem essas atitudes, quando bebemos nossa cervejinha, ou mesmo nosso café. Mas, quando se refere a substâncias que aprendemos a ver como maléficas, como intrinsecamente más, não conseguimos pensar assim tão claramente.
Por que é compreensível um uso não problemático de álcool, mas não um de maconha? Não seria o caso de rever essa legislação? Que critérios fundamentaram a discussão do que é lícito e do que é ilícito? No caso da maconha, sabemos que sua proibição atendeu a interesses políticos e econômicos e, depois, tornou-se uma ótima forma de controle sobre camadas sociais consideradas perigosas: subversivos, marginais, aqueles que insistem em não aderir aos valores da cultura.
Eu senti que eu causei um estranhamento aqui. E era essa a minha intenção. Se o narcotráfico movimenta tanto dinheiro assim, e é muito dinheiro, por que não se pensa em trazer essa movimentação financeira pra esfera legal, onde a sociedade poderia execer um mínimo de controle sobre ela? Se são substâncias que muitos querem e que são perigosas, eu acho que o Estado parece uma instância mais adequada do que o narcotráfico pra oferecer modelos de gestão sobre a produção, comércio e consumo dessas substâncias.
Eu penso agora no caso específico da maconha. O próprio Secretário Nacional Anti-drogas afirmou que a regulamentação do cigarro atualmente tem obtido resultados positivos, como a diminuição de consumo. Não seria o caso de se pensar um modelo semelhante para a maconha? Vejam bem que o que está sendo proposto aqui não é um "liberou geral", como alguns querem fazer pensar, mas uma proposta de uma lógica diferente para se pensar a questão das drogas, baseada em informação qualificada sobre drogas e respeito pela autonomia da pessoa. Eu queria deixar aqui uma pergunta final: até que ponto os danos relacionados ao uso de drogas vêm do próprio uso (e aqui penso especificamente no uso não problemático de substâncias como a maconha), até que ponto eles vêm do abuso e até que ponto eles vêm de uma legislação que não compreendeu adequadamente as complexidades, os contextos e os significados envolvidos no uso de substâncias psicotrópicas?

o artigo que a zh não quis publicar


Maconha sem estigma

Em contraponto ao artigo "Boaconha", do psiquiatra Sérgio de Paula Ramos (ZH – 12/06/2005), seria conveniente que, em vez da condenação moral dos usuários de maconha, se refletisse sobre a falta de critérios na determinação do caráter legal ou ilegal dos psicotrópicos. Estes acabam enquadrados conforme interesses políticos e econômicos, sem priorizar a redução de danos à população. Aliás, em vários países desenvolvidos, políticas de drogas têm sido abrandadas devido ao reconhecimento de que a proibição do uso causa mais danos sociais do que o próprio uso.

Desconhece-se os usos terapêuticos da maconha e os usos positivos que outras sociedades souberam fazer dela, evitando os problemas sociais existentes entre nós. Aqui, o sujeito, estigmatizado por usar a planta, sofre condenação moral e é tratado como um doente ou até como um criminoso, pois há grande desproporção entre os reais malefícios causados pela substância e a legislação que a regulamenta.

A política de drogas vigente agrava desigualdades sociais ao ignorar que o tráfico surge, muitas vezes, como a única opção de jovens em situação de pobreza. Ao adotar tal política, Estado e sociedade deixam de reconhecer sua parcela de responsabilidade e, pior, expiam-na sobre o negro pobre do morro.

Só fala na maconha como porta de entrada para drogas mais fortes, quem desconhece estudos sobre a terapia de substituição, que faz a troca do crack pela cannabis. Os resultados têm sido animadores, ao contrário dos obtidos pelos métodos tradicionais, baseados em internação, exigência de abstinência total e medicação. Assim, a maconha pode ser porta de saída do uso de drogas pesadas.

É um absurdo atribuir-se a uma planta responsabilidades por nossos erros políticos, preconceitos e inaptidão em construir políticas públicas e práticas sociais inclusivas. Não se trata de incentivar o uso da maconha nem de ignorar prejuízos que podem advir do seu abuso, mas de ressaltar equívocos do tratamento dado a essa questão (confirmados pelo aumento dos índices de consumo de drogas e da violência urbana que decorre da sua proibição). Assim, não é com abordagens maniqueístas ("boa-conha" ou "má-conha") que se produz soluções, mas através de políticas que regulamentem a produção, venda e consumo da maconha, retirando-a da ilegalidade, onde gera uma série de danos sociais, e trazendo-a para onde o Estado (e não o narcotráfico) possa geri-la.

Tiago Ribeiro, membro do movimento Princípio Ativo – por uma nova política de drogas (principioativo.rs@gmail.com)

A juventude não deve calar diante da questão das drogas

Em referência às "novas" acusações feitas por um grupo de estudantes da UFRGS e que se dirigem, mais especificamente, ao DCE (Diretório Central dos Estudantes) da Universidade e ao PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), prestamos, NOVAMENTE, os seguintes esclarecimentos:

- O evento realizado no dia 7 de maio, que discutia a legalização da maconha, foi promovido por alguns estudantes da UFRGS que não têm qualquer tipo de ligação com o DCE ou com qualquer partido ou agremiação política.

- Dessa reunião constituiu-se um movimento chamado Princípio Ativo, que centra sua atuação na defesa dos direitos da pessoa usuária de drogas e no debate e construção de uma nova política de drogas para o Brasil. Esse movimento, iniciado por estudantes da UFRGS, já conta com pessoas de diversas áreas, assumindo uma formação bastante heterogênea e representativa da sociedade.

- O movimento Princípio Ativo é autônomo: depois da reunião do dia 7, outras 3 reuniões já foram realizadas, sendo que nenhuma delas ocorreu nas dependências da Universidade. Se a luta desse grupo de estudantes é pela retirada do DCE desse debate, essa luta não tem razão de ser, já que em nenhum momento o DCE esteve presente nas discussões.

- O movimento Princípio Ativo considera que a questão das drogas é uma das mais importantes questões que se colocam na atual realidade brasileira, pois tem implicações profundas em áreas como a segurança pública, a saúde pública, as liberdades individuais, a soberania nacional, entre outras. Ao contrário do que pensam os autores do panfleto "A juventude não precisa de drogas", acreditamos que o debate acerca desse tema deveria ser incentivado pelos estudantes que realmente se preocupam com os problemas sociais do seu país.

- O novo panfleto divulgado incorre em erros semelhantes aos já cometidos no panfleto anterior, ao não esboçar qualquer distinção entre uso não problemático de drogas e o seu abuso, ao desconsiderar os usos terapêuticos e medicinais da maconha e ao não distinguir drogas leves de drogas pesadas. Estes são pressupostos básicos para se estabelecer qualquer debate ou comunicação que envolva a questão das drogas. A não observação de tais pressupostos inviabiliza o aprofundamento na questão e leva a construções superficiais e errôneas como a que tenta induzir o leitor a associar o uso da maconha com destruição física. Diversas pesquisas comprovam não só que a substância não é responsável pela destruição física de nenhum ser humano como, ao contrário, apontam para seus usos medicinais no tratamento dos sintomas de uma série de doenças.

- É justamente porque "grandes multinacionais querem abraçar este filão de dinheiro" que a urgência do debate se torna mais evidente. Além das multinacionais, no entanto, existem outras forças envolvidas, ligadas a movimentos sociais, de defesa dos direitos humanos, de educação popular, de saúde pública e redução de danos, de combate à violência e às desigualdades sociais. Estas forças pretendem estimular a construção de um modelo de regulamentação que evite a constituição de monopólios de exploração da venda da maconha (seja o monopólio do narcotráfico, seja o das multinacionais).

- Ao contrário do que é afirmado no panfleto "A juventude não precisa de drogas" esta é, sim, uma luta dos trabalhadores e dos estudantes. São trabalhadores e estudantes que constituem o grupo dos usuários de drogas e que, diariamente, sofrem abusos e têm seus direitos desrespeitados pelas autoridades e pelas políticas repressivas que há muito já demonstraram seu fracasso (comprovado pelo constante crescimento dos índices de consumo de drogas). Além do mais, os organizadores da reunião do dia 7 de maio são todos estudantes da UFRGS e pesquisadores da questão das drogas, mais especificamente da maconha, de modo que tiveram toda a legitimidade para solicitar o espaço da Universidade para suas atividades e terão, caso assim desejem, toda a legitimidade para fazer nova solicitação nesse sentido. A estrutura da Universidade está disponível para que seus estudantes a utilizem em prol de suas pesquisas, interesses acadêmicos e lutas políticas oriundas dessas práticas.

- Cabe acrescentar que o movimento Princípio Ativo não se constituiu para afirmar que a juventude precisa de drogas, tampouco para incentivar o consumo e o tráfico dessas substâncias, mas para produzir reflexão e informação sobre o assunto, de forma embasada e não-preconceituosa.

Todos esses esclarecimentos já haviam sido feitos em anterior comunicado do movimento Princípio Ativo. Os autores do panfleto, ao insistirem com afirmações falsas e caluniosas, nada mais fazem do que pôr em risco a sua própria credibilidade perante a comunidade acadêmica.

Movimento Princípio Ativo - por uma nova política de drogas

principioativo.rs@gmail.com

Porto Alegre, 5 de julho de 2005

Friday, July 08, 2005

Em um artigo chamado "Boaconha", publicado em 12 de junho de 2005 no jornal Zero Hora, o psiquiatra e psicanalista Sérgio de Paula Ramos teceu uma série de considerações a respeito da maconha, associando-a a diversas mazelas que afligem nossa sociedade. Partiu ele de declaração dada recentemente pelo ministro da Cultura, Gilberto Gil (na qual este afirmou ter consumido maconha até os 50 anos de idade), e considerou tal afirmação como um mau exemplo, passível, inclusive, de demissão. Frisando o caráter ilícito da maconha em nosso país, o psiquiatra se esquivou de uma discussão mais profunda e esclarecedora sobre a grande diversidade de usos, significados e contextos relacionados a essa substância. Parece ignorar a arbitrariedade e a ausência de embasamento científico confiável na determinação da legalidade ou ilegalidade das substâncias psicotrópicas - que é muito mais fruto de interesses políticos e econômicos do que de um interesse na melhoria da qualidade de vida da população. Consciente dessa arbitrariedade, Gilberto Gil não deve pretender passar a mesma mensagem "do adolescente que diz 'não dá nada'", como especulou o psiquiatra Sérgio de Paula Ramos. O que Gil parece querer dizer, no nosso entendimento, é que ter uma trajetória de sucesso, ser Ministro da Cultura e artista de reconhecimento mundial não é incompatível com a prática de fumar maconha. Gilberto Gil é, inegavelmente, um vencedor. E fumou maconha até os 50 anos. O que isso significa? Talvez só o próprio ministro possa dizer. Só ele sabe a parte que cabe à maconha em sua vida e em seu sucesso.

Tudo isso para dizer que não existe um uso para a maconha - que necessariamente leva ao abuso e à degradação. Existem usos diversos, muitos deles não problemáticos. Nesse sentido, seria de se pensar se, ao invés de ter que "ser demitido no ato, pelo mau exemplo", o ministro Gil não estaria se constituindo em um bom exemplo, já que nos permitiria uma reflexão sobre as possibilidades de usos não problemáticos dessa planta. Reflexão esta, por sinal, de realização muito mais urgente por parte dos nossos cientistas, tendo em vista a questão social do abuso de drogas, do que a taxativa condenação moral dos usuários, que só vem a reforçar preconceitos. Aliás, em "qualquer país medianamente sério", as políticas de drogas estão sendo abrandadas devido ao reconhecimento de que a proibição do uso é responsável por danos sociais maiores do que os advindos do próprio uso das substâncias.

Dentre esses danos sociais, acima referidos, um dos maiores talvez seja a superlotação dos presídios que, originalmente, deveriam ser instituições sócio-educativas. Na verdade, porém, constituem verdadeiros depósitos humanos, onde os apenados parecem receber da sociedade um adicional a suas penas de reclusão, sob forma de condições subumanas de sobrevivência. O que há com o Brasil, que insiste em uma lógica meramente punitiva sem jamais olhar para as suas responsabilidades no destino desses milhares de encarcerados? Hoje em dia, num país assolado por graves desigualdades, muitas vezes o tráfico de drogas surge como a única alternativa para jovens em situação de vulnerabilidade social. O que o Estado faz ao aplicar a sua atual política de drogas é deixar de reconhecer a sua parcela de responsabilidade nesse quadro e, pior, expiá-la (como tantas vezes na nossa história) sobre o negro pobre do morro.

Sérgio de Paula Ramos nos esclarece, a seguir, que maconha é uma droga, mas não faz menção a outras drogas, tão ou mais presentes no nosso cotidiano, como é o caso dos próprios medicamentos vendidos em drogarias e receitados pelos especialistas. Estes medicamentos, aliás, podem causar dependência muito mais intensa do que a causada pela maconha (em verdade, não há consenso se a maconha causa ou não algum tipo de dependência), e em altas doses podem ser letais (o que jamais pode acontecer com a mencionada erva). Mas são drogas que, receitadas em dosagens apropriadas, têm uma função terapêutica reconhecida. Assim como elas, a maconha tem, também, propriedades terapêuticas exploradas há séculos pela humanidade e cientificamente comprovadas: a maconha é utilizada com sucesso, hoje em dia, no tratamento do glaucoma, da esclerose múltipla, de pacientes em tratamento quimioterápico e como redutor dos efeitos adversos causados pela ingestão do coquetel utilizado por portadores do vírus da Aids, além de possuir uma série de outras propriedades terapêuticas que ainda não tiveram sua eficácia comprovada. Isto justamente por que, sendo a maconha proibida, no Brasil inexistem incentivos à pesquisa acerca de suas propriedades e potencialidades medicinais. Sendo assim, não seria o caso de pensarmos em outras maneiras de se regular o acesso a essa substância?

No que se refere às preocupações demonstradas pelo psiquiatra em relação aos adolescentes, parece que ele não chega a tocar nos problemas que a própria imprensa registra como os de maior gravidade, a saber: por um lado, a legião de jovens que, abandonados por suas famílias e ignorados pelo Estado e pela sociedade, encontram no tráfico de drogas a melhor alternativa de vida; e, por outro, os filhos da classe média, que têm acesso facilitado ao álcool e aos automóveis.

Os argumentos utilizados por Sérgio de Paula Ramos se fundam em premissas perfeitamente contestáveis empiricamente,já que a maconha tem sido utilizada há séculos, para os mais diversos fins, sem jamais ter se constituído em um problema social desagregador de comunidades (ao contrário, ela tem um histórico de uso agregador, apresentando em certas sociedades uma função de laço social, muito semelhante à cumprida pelo vinho ou pelo chimarrão). Foi, portanto, em meados do século XX, que teve início a construção do estigma que até hoje reveste essa planta, o qual enfatiza aspectos negativos (muitas vezes baseados em preconceitos, já que o uso da maconha se dava, até os anos 60, principalmente entre as populações pobres e de origem africana) e negligenciando seus aspectos positivos, como os usos medicinal e religioso. Mesmo o uso recreativo, que hoje se sabe ser menos nocivo à saúde do que o uso do álcool, por exemplo, foi historicamente mistificado e demonizado, o que só contribuiu para a manutenção de preconceitos e de políticas geradoras de problemas muito maiores do que aqueles causados pelo próprio uso da planta. A partir da constituição e aceitação social desse estigma, se perdeu a clareza necessária para um aproveitamento benéfico das potencialidades do cânhamo. A própria História do Rio Grande do Sul mostra o cânhamo sendo usado, até o século XIX, na confecção de tecidos, produto para o qual ele constitui matéria-prima econômica e ecológica. Esse é um exemplo de um entre muitos aproveitamentos possíveis do cânhamo, que ficam inviabilizados devido à desinformação que se constituiu a partir desse processo de estigmatização.

Por outro lado, pesquisas científicas comprovaram que a maconha não aumenta as chances do usuário tornar-se esquizofrênico, como afirmou Sérgio de Paula Ramos. O que ela faz é acelerar o aparecimento dos sintomas em pessoas que já tenham a doença em estado de latência. Além disso, é curioso que a maconha seja apontada objetivamente como possível causadora de depressão, tendo em vista seu uso milenar em diversas culturas como antidepressivo, relaxante, calmante e ansiolítico, no que constituiria um medicamento menos nocivo do que os fármacos atualmente utilizados para esses fins (é de conhecimento geral os problemas muitas vezes decorridos da administração de medicações como Prozac, Lítio, etc). O problema da argumentação do psiquiatra é que ele não leva em consideração os aspectos culturais relacionados ao uso da maconha, tão ou mais condicionantes que os aspectos bio-químicos, e já comprovados em diversas pesquisas sobre a cannabis e seus usos. Nesse sentido, a depressão que o psiquiatra aponta como resultado do uso da maconha, não poderia ser de forma objetiva atribuída unicamente a esta. Talvez um modo mais eficaz para se compreender a questão fosse não considerar somente a substância e um organismo em particular, mas observar toda uma teia de significados socialmente construídos que interferem na relação subjetiva do usuário com essa substância. Assim, a depressão pode ser oriunda não da maconha em si, mas do modo como o usuário é estigmatizado e passa a ser tratado a partir da condenação moral que sofre quando começa a fazer uso da planta. É comum que, tomando consciência desse estigma, ele fique isolado da família e da sociedade, que passam a tratá-lo como um doente, um grande desgosto, ou até como um criminoso. Parece claro que muito do que se atribui a propriedades químicas da maconha é, na verdade, fruto do tratamento social que é dado a ela e a seus usuários. Do contrário, como se explicariam os resultados de pesquisas comparativas feitas entre usuários norte-americanos e usuários jamaicanos? Segundo essas pesquisas, no primeiro caso a maconha seria um fator de desagregação familiar e uma fonte de prejuízos sociais, enquanto no segundo ela constituiria, ao contrário, um fator de agregação familiar e coesão social. Fica mais fácil, assim, compreender os motivos pelos quais, como observou Sérgio de Paula Ramos, os adolescentes se afastam afetivamente de seus pais e partem para o uso de substâncias ilícitas. Ora, longe de ser um aspecto universal das relações familiares, esse afastamento se dá unicamente na nossa sociedade, que atribuiu às drogas um caráter subversivo e desagregador, o que, aliado à proibição do consumo, torna essas substâncias extremamente convidativas para os adolescentes. Nessa linha de raciocínio, é a reação padronizada ao estigma (que faz com que os pais se horrorizem diante da possibilidade de seus filhos fumarem maconha) que contribuiria decisivamente para esse afastamento afetivo.

Outro ponto a se questionar no texto de Sérgio de Paula Ramos é aquele no qual ele se refere à maconha como porta de entrada para outras drogas. Em sentido oposto, estudos sobre a terapia de substituição (na qual o uso de substâncias como o crack vai sendo paulatinamente substituído pelo uso da maconha) têm tido resultados animadores, ao contrário dos obtidos pelos métodos tradicionais, que se baseiam em internação, exigência de abstinência total e medicações como o Diazepam. Nessa perspectiva, que vem sendo confirmada pela prática, a maconha constituiria, não a porta de entrada, mas a porta de saída do uso de drogas mais pesadas.

Assim, parece mais válido, em vez de propôr um paternalismo generalizado na sociedade, como sugere o psiquiatra, tentar compreender mais a fundo a questão das drogas e todas as suas implicações sociais e morais. Ao se erigir em agente moralizador de figuras como Lula, Edinho, Gilberto Gil e Ronaldo, Sérgio de Paula Ramos se esquiva de abordar o tema do uso de drogas em uma dimensão mais ampla, na qual os significados sociais e o tratamento legal dados a ele em nada contribuem para a produção de soluções. O que está "acontecendo com o Brasil" é uma total incapacidade de percepção dos danos causados, nas mais diferentes esferas, pela política de drogas atualmente em vigência, e por abordagens moralizantes e higienistas, que desconsideram toda essa gama de aspectos, dignos de reflexão, aqui mencionados (desconsideram, principalmente, a desproporção que há entre os reais malefícios causados pelo uso da maconha e a severidade da legislação que a regulamenta). Nesse sentido, atribuir o aumento dos índices de consumo de drogas por adolescentes e dos índices de violência urbana a uma "falta de pai" é, no mínimo, simplismo e ingenuidade. Não há pai que resolva uma situação histórica de desigualdade social, preconceito e indiferença, como a que vivenciamos e vemos se agravar no Brasil nas últimas décadas. Não cometamos o disparate de atribuir a uma planta a responsabilidade por nossos erros políticos, nossos preconceitos, nossa incapacidade de aceitar a diferença e de conviver com a diversidade e, principalmente, nossa inaptidão em construir políticas públicas e práticas sociais inclusivas. Os índices de violência urbana e consumo de drogas crescem, entre outras razões já apontadas, porque nosso sistema de valores está a formar sujeitos completamente incapazes de gerir suas próprias vidas, precisando sempre da velha tutela paternalista, a mesma que o psiquiatra está a propôr como solução dos nossos problemas.

Não se trata aqui de incentivar o uso de maconha ou mesmo de minimizar os prejuízos que podem advir do seu uso abusivo, mas de ressaltar o equívoco do tratamento dado atualmente para essa questão (equívoco este que só vem a ser confirmado pelo constante crescimento dos índices de consumo de drogas e da violência urbana decorrente da ilegalidade desse consumo). Deste modo, não é com abordagens maniqueístas ("boa-conha" ou "má-conha") que se vai produzir soluções, mas através de uma política que regulamente a produção, a venda e o consumo da maconha, retirando-a da esfera ilegal, onde produz uma série de danos sociais perfeitamente evitáveis, e trazendo-a para onde o Estado - e não o narcotráfico - possa geri-la. Pensemos nisso.