Monday, May 08, 2006

As atuais políticas de drogas estão funcionando?

As drogas hoje ilícitas foram proibidas no começo do século XX para preservar a saúde das pessoas. Esperava-se, com a aplicação de penas a usuários e vendedores dessas substâncias, redução de consumo e de danos às pessoas e à sociedade. Hoje o que se vê é um grande crescimento do uso dessas drogas. Com o aumento da demanda e a proibição da venda, formou-se um comércio ilícito que, sem a regulamentação do Estado, se regulou por conta própria, usando de uma violência crescente. O resultado é conhecido: milhares de mortes desnecessárias, a maioria devido à ação do tráfico e à repressão e não ao uso das drogas.
O Estado tem o dever de zelar pela vida dos cidadãos. Se as drogas são perigosas e capazes de arruinar vidas (e são), as conseqüências da proibição as têm arruinado muito mais e produzido maiores danos à sociedade. É preciso reconhecer que a proibição do uso de drogas não reduziu o consumo e gerou novos problemas. Além da violência, a criminalização dessas condutas prejudica o atendimento aos usuários que se tornaram dependentes, isso sem falar no desperdício de dinheiro público na manutenção da repressão, enquanto faltam recursos para tratamento de qualidade aos dependentes (lembremos que a repressão é muito mais cara do que a prevenção).
Superemos os preconceitos e assumamos a discussão de uma nova política de drogas que reduza o consumo através de educação e prevenção. Não se trata de deixar livres a venda e o uso dessas substâncias, mas de regulamentá-las para saber quem vende, quem compra, onde, em que quantidade e para onde vai o dinheiro movimentado nesse comércio. Só com esse controle será possível trazer o problema das drogas à sua real dimensão, a da saúde pública, criando estratégias eficazes para, com respeito à dignidade das pessoas, desestimular o uso de drogas e reduzir conflitos. Lembremos que o consumo do tabaco está sendo reduzido por meio de sanções, mas não da proibição total ao uso e comércio.
É viável um modelo menos nocivo que o atual. Podemos reduzir a violência, controlar o consumo de drogas, arrecadar fundos para educação e prevenção e diminuir a corrupção que o tráfico engendra no poder público. Uma nova política de drogas, aliada a projetos de distribuição de renda e geração de oportunidades é capaz, se não de construir a sociedade dos nossos sonhos, ao menos de reduzir os danos causados por décadas de políticas equivocadas.


Tiago Ribeiro é acadêmico de filosofia e participante do coletivo Princípio Ativo – por uma nova política de drogas.

Saturday, May 06, 2006

Desvio e Divergência nos Usos de Drogas e seus Sentidos


Os fenômenos de usos de substâncias psicoativas remontam à Antigüidade da experiência humana e, de diversas formas, em diversos contextos históricos e sócio-culturais, receberam, por parte das pessoas e dos grupos sociais, diferentes sentidos e interpretações. Deste modo, cada sociedade ou, mais do que isso, cada pessoa dela participante, em cada momento histórico, atribui sentidos diversos e específicos a essas práticas de alteração da consciência. Tais práticas, portanto, desprovidas de um sentido absoluto (o sentido delas em si mesmas), se constituem, ou melhor, são constituídas, por meio da atribuição de sentidos que cada pessoa ou grupo social lhes confere, atribuição esta que dependerá, invariavelmente, de sobredeterminações diversas ligadas ao momento histórico, ao sistema simbólico e valorativo, a aspectos psicológicos e psicossociais dentre uma vasta gama de fatores intervenientes que, mais ou menos, interferem na experiência e na recepção dessa experiência por parte de cada pessoa e cada grupo social.
Deste modo, ocupa-se o presente texto com a apresentação de algumas considerações acerca dos usos de drogas em nossa sociedade ocidental contemporânea, em seus contextos urbanos, e com as formas pelas quais tais práticas são significadas enquanto comportamentos desviantes que se dão em situações de estigmatização. Para esta reflexão, faço uso de noções apresentadas por Gilberto Velho e Filipina Chinelli em seus textos “Estigma e Comportamento Desviante em Copacabana” e “Acusação e Desvio em uma Minoria”, presentes no livro “Desvio e Divergência: uma Crítica da Patologia Social”, bem como por Maria Dulce Gaspar (“O Jogo de Atributos: a construção da identidade social da garota de programa”), Erving Goffman (“Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”) e Howard Becker (“Los Extraños: sociología de la desviación”).

Parto aqui do pressuposto de entendimento do usuário de drogas como uma minoria dentro do nosso universo social. Segundo Wirth, citado por Filipina Chinelli, uma minoria é “um grupo de pessoas que, em virtude das suas características físicas ou culturais, são afastadas de outras na sociedade em que vivem por um tratamento diferencial e desigual e que, portanto, se vêem como objeto de discriminação coletiva. A existência de uma minoria numa sociedade implica a existência de um grupo dominante correspondente que desfruta status social mais alto e maiores privilégios. O status de minoria carrega consigo a exclusão de participação completa na vida da maioria”. Assim, o uso de drogas, prática definidora dessa categoria “usuário de drogas”, enquanto prática minoritária no interior da nossa sociedade, no atual momento histórico, e enquanto prática sobre a qual se encontra atribuído um estigma, pode ser considerada, seguindo-se a linha de interpretação expressa por Gilberto Velho, como uma prática ou um comportamento desviante. Falar, contudo, em “desvio”, é, necessariamente, falar em “norma” e, isto posto, faz-se necessário, mesmo que de forma breve, mencionar que agrupamentos humanos estabelecem como regramento para sua melhor convivência determinadas normas de conduta que são, de fato, a expressão prática de conceitos e valores morais.
Bem, em nossa sociedade e em nosso momento histórico, o uso de drogas é algo classificado normativamente como “errado”, “nocivo”, “perigoso” e mesmo “criminoso”. Tais classificações originam (ou se originam de, não cabe a este trabalho empreender tal complexa investigação) sistemas morais e sistemas legais que objetivam o controle e o impedimento dessa prática. Nesse sentido, nos é lícito afirmar, correndo os devidos riscos e seguindo a linha de Velho e Chinelli, que o uso de drogas constitui um comportamento em desacordo com o conjunto de valores que expressam a identidade e a unidade (ideais) do grupo maior, a sociedade. Usar drogas (notadamente as drogas ilícitas), portanto, no contexto aqui referido, constitui um desvio social passível de diversas formas de sanções e punições (desde a dificuldade de acesso à substância desejada, até as sanções morais, o preconceito, o estigma e, por fim, as sanções penais).
Exatamente como refere Velho, Goffman e outros autores ocupados com o estudo dos comportamentos desviantes e dos processos de estigmatização que a eles se relacionam, o usuário de drogas é transformado, não exatamente por sua prática de uso de drogas, mas sim pelas sanções e restrições impostas ao comportamento condenado pelo sistema de valores, em uma pessoa acusada de atos criminosos, de incapacidade de gerenciamento da própria vida, em ameaça potencial a todos que vivem em conformidade com o modelo “apropriado” de viver, etc. Aplicando, pois, a este objeto, o raciocínio empregado por Filipina Chinelli, a condenação a certas práticas é a manutenção de outras, aquelas que constituem e caracterizam o grupo dominante. Chinelli, tomando a perspectiva interacionista de Becker afirma então, com relação ao homossexualismo, aquilo que Becker afirmou com relação a diversos outros comportamentos, dentre os quais o uso de drogas: “o desvio é uma criação da própria sociedade”, pois é em relação a ele que o grupo majoritário se reafirma enquanto produtor das regras, dos sentidos e das dinâmicas da vida social.

Os comportamentos desviantes se caracterizam por produzir marcas negativas na identidade social daquele que os apresenta, de modo a influenciar decisivamente as concepções e as ações dos demais em relação a estes, e vice-versa. Assim, o estigmatizado, o desviante é o suspeito principal ao qual será atribuída a culpa por esta ou aquela situação desfavorável, por este ou aquele delito. Como refere Gilberto Velho, mesmo que, no mais das vezes, a apuração dos fatos não confirme a culpabilidade do desviante, este seguirá como o eterno vigiado, o suspeito a priori, o principal acusado. E, logicamente, nos casos minoritários em que de fato houve alguma participação do desviante, essa participação será extremamente exagerada, amplificada e servirá como comprovação de tudo aquilo que “todos já sabiam” acerca dele. Ou seja, a presença de um desviante constitui, nos termos de Velho, “um ambiente potencial favorável ao surgimento periódico de ‘cruzadas’ moralistas”.
É importante ter em mente, aqui, o pensamento de Howard Becker sobre o desvio. O comportamento desviante não constitui uma substância, quer dizer, não tem um conteúdo intrínseco. Neste sentido, usar drogas ilícitas, ter práticas homossexuais ou ser prostituta não constitui um desvio a não ser que esteja em uma determinada relação social com outras práticas que, dominantes e sistematizadas, operam como um sistema valorativo e prescritivo das ações e das concepções de todos os moradores de um dado agrupamento social. O que Becker parece querer enfatizar é a forma de produção de normas e desvios, enquanto os conteúdos propriamente ditos, com os quais tais formas serão “preenchidas”, se encontram submetidos a sobredeterminações e contingências históricas, sociais, culturais, etc. Deste modo, os mesmos comportamentos, em contextos e/ou épocas diversas, podem ocupar posições também diversas nos sistemas de valores (ou esquemas simbólicos) que normatizam e “preenchem” com conteúdo e ditames morais as relações que se estabelecem entre as diferentes pessoas e grupos no interior de uma coletividade.
Como Gilberto Velho ilustra, “existe uma fraca relação entre os incidentes, propriamente ditos, e as pessoas identificadas como desviantes”. Quer dizer, quando se trata do estudo acerca de temas como o desvio, a divergência e o estigma, se trata de, menos do que atentar para o conteúdo das práticas dos atores sociais, atentar para a forma como estas são identificadas pelos demais. Assim, quando pessoas acusam outras de serem “drogadas” ou “prostitutas”, elas estão produzindo informações acerca de si mesmas, ou, pelo menos, acerca das regras que organizam o grupo social que representam. De certa forma a acusação de “desviante” se dá no sentido de encontrar “bodes expiatórios” para quaisquer problemas ou dificuldades que se encontrem em meio à sociedade. Quer dizer, quaisquer características que afastem a pessoa do modelo “normal” podem servir, em uma situação de crise em que a estrutura valorativa e identitária do grupo se encontre, por alguma razão, abalada ou posta em xeque, como motivos suficientes para acusações. O desviante, deste modo, ao ser identificado à causa dos problemas, garante a manutenção da solidez do sistema de vida dominante, impedindo que este tenha de se confrontar com suas contradições, suas falhas e, principalmente, impedindo que as pessoas que o sustentam (e por ele são sustentadas) tenham de enfrentar o risco representado por todo e qualquer processo de mudança. Desta forma, como afirma Gilberto Velho, “é necessário explicar os possíveis problemas [...] como sendo produto e originados em um locus específico, com limites claros”. Tal locus pode ser, como no caso do texto de Velho, prédios grandes com muitos apartamentos ou, como no trabalho de Maria Dulce Gaspar, a “promiscuidade” das garotas de programa ou, ainda, como aqui se pretende, o uso de drogas de certos subgrupos no interior de sociedades complexas. Em todos esses casos, contudo, trata-se, por parte dos grupos majoritários, de “cercar” de algum modo esses subgrupos e os locais onde eles desenvolvem suas práticas e seus modos de vida desviantes. Trata-se, ainda, de classificá-los (o que será feito de forma coerente com todo o sistema valorativo dominante) como indesejáveis, assegurando-se de que nenhum tipo de “confusão” possa se dar entre norma e desvio, entre “normais” e “desviantes”. Ou seja, trata-se da determinação, por parte da coletividade, de seus limites morais, das fronteiras entre o “aceitável” e o desviante, o que se dará por meio da definição de papéis e de posições sociais. Quer dizer, conceitos e seus significados são determinados (disputados) de modo a constituir um sistema de relações sociais mais ou menos normatizadas de acordo com as posições e os papéis que cada pessoa e cada grupo ocupa. Cada vez que uma ruptura se processa nesse sistema mais ou menos equilibrado encontramo-nos diante de uma situação de desvio (como, por exemplo, o homem que não age conforme o conceito histórica e socialmente dominante de “homem” ou o homem que, com suas práticas, contradiz o conceito histórica e socialmente dominante de “saúde” ou de “vida saudável”).
Mas é interessante notar que tais “conceitos dominantes” se encontram permanentemente em disputa e que nunca chegam a se cristalizar completamente no seio de um agrupamento social ou de uma comunidade de valores. Operam nesse processo diversos fatores que se conectam, uns em referência aos outros, na constituição de uma “rede” ou de uma “teia” de significados e referenciais comuns (ou quase comuns). Tais sistemas de sentido são construídos ao longo do processo histórico de uma sociedade, mais ou menos em contato com outras sociedades, sempre a partir de valores básicos tomados por “verdades absolutas” ou “verdades primeiras”, as quais constituirão o fundamento de outros valores, coerentemente relacionados aos primeiros (Mary Douglas, em “Como as instituições pensam” apresenta um interessante raciocínio nessa linha). Exemplos desses processos são apresentados, no que se refere ao uso de drogas, pelo historiador Henrique Carneiro em seu livro “Filtros, Mezinhas e Triacas – as drogas no mundo moderno”, quando tal prática é proscrita na Idade Média por contradizer valores fundamentais do cristianismo (o uso de drogas era identificado aos prazeres sensuais, proibidos por um sistema de valores que via no corpo a fonte do mal) e na Idade Moderna por ser associada ao delírio e à irracionalidade (em oposição à Razão, fonte de todo saber e de todo valor).

Penso ter enunciado e analisado algumas das principais características das noções de “comportamento desviante”, tais como expressas pelos autores citados. Penso, também, ter proposto com alguma propriedade uma leitura dos fenômenos de uso de drogas, em nossa sociedade, como exemplos de comportamento desviante, a partir da explicitação de semelhanças entre esta e outras práticas, citadas e estudadas por esses mesmos autores. Tais práticas denominadas “desviantes” não carregam, contudo, em si mesmas, uma natureza desviante. São elas o produto de relações históricas e sócio-culturais que conferem sentido e atribuem valor a conteúdos (a ações) que dependem inteiramente desse processo para serem compreendidos e julgados pelas pessoas e pelos grupos. O entendimento dos comportamentos desviantes enquanto conceitos relacionais ajuda a compreender os modos pelos quais as sociedades se constituem e se organizam pelo estabelecimento de papéis e posições sociais, sistemas de sentido e valoração e, também, os modos pelos quais as pessoas, imbuídas de tais sistemas, operam suas “verdades”, suas “certezas”, suas “simpatias” e seus “afetos”, atuando e julgando em conformidade com tais sistemas, sejam eles majoritários ou minoritários. A identificação, portanto, daqueles comportamentos que serão classificados como “desviantes”, dentre os inúmeros comportamentos humanos possíveis, pode nos prover de uma vasta gama de informações sobre a sociedade e sobre as formas como ela se pensa, se produz, se mantém e se transforma a partir da atribuição de sentidos e valores a práticas que, em si mesmas, nada valem ou significam.