Saturday, December 17, 2005

Princípio Ativo: estudantes questionam a proibição de “drogas” em POA

No início deste mês de dezembro, ocorreu, no campus do vale da UFRGS, o primeiro de uma série de eventos sobre “drogas”, com uma abordagem anti-proibicionista, a serem organizados pelo grupo de estudos Princípio Ativo.

O uso do termo “drogas”, assim entre aspas, já começa por situar nosso ponto de partida: visamos problematizar esta palavra famosa[1]. Tirá-la do lugar-comum de definições onde ela se encontra – a começar pelo ambiente acadêmico. Afinal, por mais que se possa pensar que é na universidade que até mesmo aquelas pessoas ditas “caretas” possam ter contato com o uso de “drogas”, deixando de reproduzir certos estigmas acerca do usuário, é justamente nestes locais (ditos “produtores de conhecimento”) que enxergamos necessidade de iniciar nossa atuação. Nossa abordagem, no evento, é direcionada à substância ilegal mais consumida no Brasil: a maconha. Porém, os problemas causados pela proibição vão além de classificações de substâncias, e se relacionam com vários outros universos.

Pode ser fácil tentar adivinhar o que motivou o encontro de aproximadamente 35 pessoas, em uma sala de aula, para assistir a exibição de um documentário[2], seguida de um debate conduzido por uma profissional da área da saúde, a doutora em psicologia clínica Marta Conte. Ali, entre as pessoas que aplaudiam o documentário, enquanto este mostrava alguns dos muitos absurdos provocados pela lei, estavam reunidos posicionamentos individuais diversos sobre o tema. Muitos, talvez, usuários da cannabis já acostumados a levarem tapa, seriam apoiadores naturais de uma legalização e descriminalização daquilo que pra eles é um ato não-problemático, por mais que certos setores da mídia, apoiados em discursos generalizantes, queiram tentar provar o contrário.

Mesmo estas pessoas, que possuem uma visão mais apurada das controvérsias sob as quais se apóiam o discurso proibicionista, podem não ter se dado conta de que as “drogas”, enquanto “problema social”, só foram surgir na transição do século XIX para o século XX. Uma abordagem que simplesmente não existia nos seis mil anos anteriores a este período, época mais remota em que se descobriu o uso de substâncias psicoativas. No próprio início do século XX, ainda a maconha, por exemplo, era receitada normalmente, tendo em vista suas propriedades medicinais. A partir da aplicação de uma série de leis neste período, o uso passou a ser encarado como um “problema social”.

Tentamos colocar este “problema” em um debate dinâmico, após a exibição do documentário.

As perguntas surgem rapidamente: qual o sentido de uma lei que não é respeitada nem desejada? O usuário é mais “culpado” do que a própria lei, em sua suposta “fomentação da violência e do tráfico”? Até que ponto o maior dano causado pelo uso de “drogas” reside na sua criminalização, e não em uma ação biológica da substância? E as outras “drogas” ilícitas? Qual a diferença principal nesta abordagem, e quais princípios norteiam a proibição, tratando todos usuários como doentes, ou como pessoas com pouca capacidade de julgamento do que é “bom” ou “ruim”? O que é “bom” e o que é “ruim”, em nossa sociedade de valores consumistas? Podemos, realmente, empregar o termo "droga", assim no singular, pretendendo fazer referência a toda uma vasta gama de substâncias, algumas bastante diferentes de outras?

Será possível eliminar toda e qualquer demanda por psicotrópicos, quando a Antropologia e a História nos informam que todas as sociedades humanas, em qualquer região do globo ou período histórico, fizeram uso (religioso, terapêutico, recreativo ou produtor de laços sociais) de alguma substância ou prática alteradora da consciência? E se o insucesso do modelo proibicionista o acompanha desde seu surgimento, é possível atribuir a atual situação a um mero “erro” na aplicação desta política pública? Até que ponto esta situação de desinformação, distorção e estigmatização se afasta de uma idéia de “bem comum” e se aproxima de certos interesses particulares?

Se tentássemos responder a tudo isto em somente um encontro (ou em um artigo), certamente nos faltaria tempo e espaço.

O importante é que, nesta mera formulação de perguntas, se constrói uma certeza: qualquer abordagem que se proponha a estudar o uso de psicoativos deve possuir, também, uma ótica científica sociológica e antropológica, firmemente apoiada em dados históricos, como deve ser – e não possuir apenas uma ótica biológica, que, afinal, só estuda uma substância quando esta já foi administrada em um corpo. Qualquer explicação das decorrências deste uso em uma larga escala de indivíduos, a partir de biologia, se torna cientificamente insuficiente para aquilo que os próprios médicos dizem ser um “problema social”.

Hoje em dia, há também uma distorção da palavra “legalização”. Tentamos chamar a atenção, nos nossos eventos, para o fato de que um processo de legalização é uma política a ser ainda projetada, resultando de estudos sérios acerca das nossas condições sociais. Entendemos que eventos como este, que começamos a realizar primeiramente no ambiente acadêmico (criando oportunidades para que mais pessoas, de diversas áreas, se juntem ao grupo), contribuem para que comecem a ser apontadas alternativas a este modelo proibicionista. Anti-proibicionismo é diferente de pró-legalização, neste sentido, uma vez que existem várias formas de se dar esta legalização - muitas delas não-desejáveis, como uma simples apropriação deste mercado ilegal por grandes indústrias, por exemplo.

De fato, abandonando de vez qualquer utopia de "paraísos livres de drogas", nos cabe reconhecer que o possível, aqui e agora, é trabalhar pela redução dessa demanda, não tendo no horizonte a ilusão de que se possa, primeiro, vigiar as populações para que nenhum indivíduo faça uso de substâncias tornadas ilícitas e, segundo e ainda mais absurdo, nutrir a ilusão de que se possa, legítima e praticamente, impedir uma pessoa de desejar alterar sua percepção. O que se pode, e se deve, fazer, é informar reiteradamente acerca dos riscos do uso de certas substâncias, impedir qualquer propaganda ou incentivo a esse uso, fornecer atendimento médico àqueles usuários que se tornam dependentes (um índice variável de substância para substância, mas quase sempre minoritário dentro do universo dos usuários) e que desejarem abandonar o consumo e, por fim, oferecer alternativas de compra dessas substâncias por parte dos usuários, sem que isso implique na legitimação de corporações criminosas capazes de impor o terror a pessoas que nada tem a ver com quem quer usar “drogas”.

***

Princípio Ativo é um misto de grupo de estudos e movimento social formado em Porto Alegre em maio de 2005 por estudantes e profissionais de diversas disciplinas e áreas de atuação e conhecimento. O grupo se propõe a produzir e disseminar informação e reflexão acerca de drogas e políticas de drogas no Brasil, fomentando o debate público e aberto em busca de alternativas ao proibicionismo atualmente em vigência.

Fundamentando sua atuação nos princípios dos Direitos Humanos, o Princípio Ativo defende, a partir de uma perspectiva isenta de preconceitos acerca de usos e usuários de psicoativos, a construção de modelos de regulamentação da produção e do uso dessas substâncias que não sejam pautados pela mera proibição e repressão. As abordagens proibicionistas e repressivas, no entender do grupo Princípio Ativo, geraram, ao longo das últimas décadas, mais e maiores prejuízos à sociedade do que o próprio consumo das drogas proscritas, tornando uma necessidade urgente o debate e a construção de alternativas a essa forma de pensar e de agir em relação aos usos de psicoativos. O Princípio Ativo acredita na possibilidade de construção de uma nova política de drogas, mais justa, humana e condizente com a realidade social e cultural do nosso país.

Contatos: principioativo.rs@gmail.com



[1] Tal abordagem ao termo é utilizada por Maurício Fiore em seu artigo “Tensões entre o biológico e o social nas controvérsias médicas sobre uso de ‘drogas’”(Caxambú, 2004). Segundo o autor, as aspas são um sinal gráfico eficiente por demonstrar que certas palavras possuem significados diversos, refletindo determinadas ideologias que devem ser deixadas de lado conforme a abordagem.

[2] “Grass” (Ron Mann, Canadá - 1997) é um documentário que mostra como surgiram as primeiras leis de proibição da cannabis nos EUA, bem como alguns dos interesses políticos em torno desta proibição, se utilizando de um vasto material, tanto de relatórios oficiais da época, quanto de produções culturais que refletiam posições diversas sobre o tema, da década de 20 até os dias atuais.

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