Sunday, October 02, 2005

Drogas: muito além de permissão ou repressão

Tiago M. Ribeiro


Em relação ao artigo "Droga: permitir ou reprimir?", publicado por Moacyr Scliar em Zero Hora de 13 de setembro, gostaria de oferecer uma outra perspectiva para se pensar o assunto. Cabe, primeiramente, uma reflexão acerca do próprio título do texto: podemos, realmente, empregar o termo "droga", assim no singular, pretendendo fazer referência a toda uma vasta gama de substâncias, algumas bastante diferentes de outras? Quer dizer, é legítimo abarcar toda essa diversidade em um discurso único? Me parece mais válido, se quisermos de fato compreender do que estamos falando, particularizar ao máximo nosso objeto, afim de percebermos semelhanças e diferenças nos significados, contextos e especificidades dos diversos fenômenos vinculados ao uso de substâncias psicotrópicas. Além disso, falar unicamente em "droga", referindo-se, explicitamente, apenas às substâncias ilícitas, induz o leitor a operar uma distinção arbitrária, deixando de aplicar esse estigmatizado termo ao álcool e ao tabaco, drogas lícitas que, gerando mais danos do que as próprias substâncias proibidas, destas diferem unicamente por serem lícitas e comercialmente exploradas com a chancela do Estado. Assim, a análise do título do texto já nos aponta um problema, pois a aplicação ambígua do termo "droga", associada a um questionamento acerca de se devemos permitir ou reprimir o uso dessas substâncias, afasta da percepção imediata do leitor o fato de que já temos drogas permitidas e drogas proibidas e de que os critérios para essa distinção não são absolutamente claros, atendendo mais a interesses de grupos políticos e econômicos do que ao interesse de redução de danos à população. Ora, se todos já sabemos que a cachaça tem um poder destrutivo muito maior do que a maconha, o que fundamenta que aquela seja lícita e esta ilícita? E isso sem entrar em considerações culturais, que nos remeteriam ao preconceito instituído contra aqueles que se atrevem a alterar a consciência com outra substância que não a droga "oficial" da nossa cultura, o álcool. Não quero, com esse aprofundamento, acusar o autor do artigo de má-fé ao escolher o título de seu texto, mas enfatizar o quanto estamos inclinados a adotar procedimentos distintivos arbitrários em relação às substâncias psicotrópicas, tomando o seu caráter lícito ou ilícito como fator decisivo na nossa disposição de tolerar ou condenar seus usos, deixando de lado qualquer abordagem mais crítica acerca dos critérios que determinam o permitido e o proibido, bem como da coerência e da lógica por trás dessas disposições.

O assunto da liberação das drogas ilícitas volta, periodicamente, à cena, como bem apontou Scliar, porque a sociedade percebe que as abordagens vigentes não são satisfatórias. Quer dizer, qualquer um pode perceber que décadas de repressão e proibicionismo não foram eficientes no sentido de reduzir índices de consumo de drogas e, pior, engendraram um mecanismo perverso de reprodução de violência, corrupção e arbitrariedades diversas que vão muito além do consumo das substâncias. No quadro atual, as drogas atingem não só quem as usa, mas também quem não tem nada a ver com isso (não usa e não se interessa pelo tema) mas sofre com a violência gerada pelo tráfico decorrente da ilegalidade desse comércio. Assim, o tema da legalização das drogas é recorrente porque o modelo repressivo proibicionista não funciona: não atinge seus fins e ainda propicia as condições para o desenvolvimento de um monstro muito mais perigoso do que as drogas, o tráfico de drogas.

Um exemplo cabal do fracasso das políticas repressivas, a Operação Colômbia constitui uma intervenção norte-americana em território colombiano, contando com a conivência do governo deste país, sob o pretexto de eliminar sua produção de cocaína. A metodologia adotada para este combate consiste na inutilização dos cultivos de folha de coca por meio de agentes químicos. Lançados de aviões que sobrevoam as plantações, esses agentes se espalham pelo ar ao longo de vastas áreas, destruindo também outros cultivos agrícolas (inclusive de gêneros alimentícios), prejudicando a saúde de moradores e trabalhadores dessas regiões e inutilizando por décadas solos outrora férteis. Calcula-se em cerca de 50 bilhões de dólares os gastos envolvidos na Operação Colômbia. E isso tudo, pasmem, não atingiu o objetivo declarado da operação, que é a diminuição da produção de cocaína naquele país. Mas atingiu, certamente, outro objetivo, este, geopolítico: os Estados Unidos podem contar com uma base de operações militares na América do Sul, região turbulenta e estratégica para a política externa norte-americana desde a Segunda Guerra.

É frequente que se encontre, em análises sobre a questão das drogas, referências a leis de mercado, do tipo "havendo demanda, haverá oferta". O que quero esboçar nesse texto é uma outra forma de se pensar e produzir soluções para os problemas que se relacionam ao uso de drogas. Não seria mais lógico que, em vez de se tentar coibir uma prática que acompanha o ser humano desde os seus primórdios (a busca por outros estados de consciência), se concentrasse esforços no combate a um fenômeno bem mais recente, surgido no esteio da proibição de substâncias como a maconha e a cocaína, ocorrida no século XX? Me refiro, obviamente, ao fenômeno do tráfico de drogas, que atingiu proporções gigantescas nesse início de século XXI e que se beneficia justamente da incompreensão das autoridades e do senso comum acerca do que realmente significa esse anseio humano por experienciar outros estados mentais. Assim, o desconhecimento, o medo e o preconceito que estas práticas acarretam em nossa sociedade ocidental contemporânea complexa, abrem caminho para que grupos criminosos assumam o controle do comércio de algumas das substâncias psicoativas ficando, outras, liberadas para o uso e livres de qualquer estigmatização mais profunda. Ou seja, é bom trazer o debate para bases reais. É possível eliminar toda e qualquer demanda por psicotrópicos quando a Antropologia e a História nos informam que todas as sociedades humanas, em qualquer região do globo ou período histórico, fizeram uso (religioso, terapêutico, recreativo ou produtor de laços sociais) de alguma substância ou prática alteradora da consciência? Não seria mais inteligente, pela regulamentação e legalização da produção, comércio e consumo dessas drogas, atacar incisivamente aquele que é o gerador dos maiores danos à sociedade brasileira, o tráfico dessas substâncias? Abandonando de vez qualquer utopia de "paraísos livres de drogas", nos cabe reconhecer que o possível, aqui e agora, é trabalhar pela redução dessa demanda, não tendo no horizonte a ilusão de que se possa, primeiro, vigiar as populações para que nenhum indivíduo faça uso de substâncias ilícitas e, segundo e ainda mais absurdo, nutrir a ilusão de que se possa, legítima e praticamente, impedir uma pessoa de desejar alterar sua percepção. O que se pode, e se deve, fazer, é informar reiteradamente acerca dos riscos do uso de certas substâncias, impedir qualquer propaganda ou incentivo a esse uso, fornecer atendimento médico àqueles usuários que se tornam dependentes (um índice variável de substância para substância, mas quase sempre minoritário dentro do universo dos usuários) e que desejarem abandonar o consumo e, por fim, oferecer alternativas de compra dessas substâncias por parte dos usuários, sem que isso implique no financiamento de corporações criminosas capazes de impôr o terror a pessoas que nada tem a ver com quem quer usar drogas.

O que geralmente se esquece quando se faz acusações ao tráfico de drogas e se exige penas mais severas para os traficantes é que a maioria dos envolvidos nessa cadeia criminal encontrou nela uma oportunidade de sobrevivência melhor do que qualquer outra alternativa. Quer dizer, a maior parte dos envolvidos com esse tipo de crime é constituída por jovens pobres que não têm acesso às benesses do Estado Democrático de Direito. Trata-se do produto de um histórico sistema excludente que segue sendo alimentado e renovado pela publicidade, pela péssima distribuição de renda, pela veiculação midiática de valores consumistas e individualistas, de modo que essas pessoas também querem o tênis da moda, também querem o celular que toca música... Elas querem o que seus pares da classe média querem. Como realizar esses valores? Quantos de nós, ditos "cidadãos de bem", se colocados na situação desses excluídos, não faríamos as mesmas escolhas que eles fizeram, agindo da mesma forma, roubando, traficando, matando? Assim, de que servem penas mais duras quando a origem do problema está no fato de que temos uma sociedade partida e, caso não se ataque essa questão social, a fábrica do crime continuará gerando cada vez mais candidatos a "monstros"? Lamentavelmente, o senso comum parece mais propenso a destinar metade das áreas das cidades para que se construam presídios do que a repartir um pouco o bolo. O problema maior não está no traficante ou nas drogas, mas no individualismo e na desigualdade econômica. O que é necessário se dar conta é que a distribuição de renda vai acontecer de um modo ou de outro, seja por meios legítimos, seja por meio de assaltos ou tráfico de drogas. Já é tempo de a sociedade assumir as suas responsabilidades nesse caos social e abandonar o jogo perverso que culpabiliza e demoniza os pobres quando estes não aceitam sua condição subalterna e empregam os meios de que dispõem para reagir.

Quando se fala, no entanto, em legalizar o comércio de drogas como uma forma de redução dos danos gerados pela proibição (que engendra o tráfico), deve-se ter em mente que o tema é delicado. Dito isso, manifesto minha discordância em relação às propostas de legalização feitas por grupos liberais norte-americanos. Esses grupos estão evidentemente interessados na exploração do mercado consumidor e não na redução dos danos sociais gerados pelo tráfico. Legalizar a venda de drogas hoje ilícitas e entregar esse comércio para grandes corporações explorarem representa simplesmente a transferência do monopólio. Medida mais adequada me parece ser a construção de um modelo de regulamentação que permita o plantio para consumo próprio (prática que hoje é enquadrada como tráfico de drogas, ou seja, essa legislação vigente incentiva a compra no mercado ilegal) e a constituição de pontos de venda controlados pelo Estado. Por óbvio que seja, cabe ressaltar que ninguém, sejam traficantes, sejam grandes empresas, tem o direito de patentear um produto da natureza, a planta cannabis sativa. Além do mais, esse modelo de regulamentação deve ser rigoroso, no sentido de que o uso não seja incentivado e não tenha visibilidade. Rigor, aliás, que deveria igualmente ser aplicado nos casos do álcool e do tabaco, drogas de fácil acesso e de uso constantemente incentivado (principalmente o álcool). Em suma, o que proponho é que todas as medidas possíveis sejam tomadas no sentido de evitar o consumo de drogas, com a exceção de medidas proibitivas repressivas, de modo que quem quiser fazer uso de tais substâncias terá seu direito de escolha respeitado, contanto que cumpra com certos deveres correlacionados como, por exemplo, a proibição de que dirija automóveis sob o efeito dos psicoativos e do consumo em ambientes como escolas, hospitais, espaços públicos fechados, etc. Nada muito além do que já é aplicado em relação às drogas lícitas. Evidentemente, as características do modelo de regulamentação do comércio de drogas, hoje ilícitas, a ser adotado, ainda requer estudos mais profundos afim de se avaliar quais as medidas mais eficientes no sentido de se amenizar as conseqüências do tráfico de drogas.

Vamos tomar em consideração, então, um caso mundialmente conhecido de flexibilização da legislação acerca da maconha: a Holanda. O modelo holandês é freqüentemente reportado quando se trata de pensar sobre a legalização do comércio de drogas leves, de modo que comumente se esboçam comparações e generalizações indevidas a partir do caso holandês, tomando-o como exemplo definitivo ou prova cabal tanto do sucesso quanto do fracasso de políticas antiproibicionistas. Cabe, então, um olhar mais cuidadoso acerca desse tema: em 1976, o governo holandês regulamentou o comércio de maconha, que passou a ser realizado em estabelecimentos especiais e sob controle governamental. De lá para cá, uma série de pesquisas, com diversas metodologias, foram realizadas, a fim de aferir as conseqüências dessa medida. Algumas dessas pesquisas apontaram para um grande aumento do consumo de maconha naquele país, sem atentar para uma variável que jamais poderia ser deixada de lado, a saber, o grande afluxo que ocorreu, a partir da regulamentação, de turistas estrangeiros para a Holanda, atraídos pela possibilidade de consumirem maconha sem serem importunados pelas autoridades de seus países. A constituição desse verdadeiro "turismo canábico" explica esses altos índices de consumo de maconha na Holanda pós-regulamentação. Pesquisas mais bem conduzidas levaram em consideração esse fenômeno e, a partir de uma metodologia mais refinada, concluíram que, entre os holandeses, o consumo de maconha apresentou, inicialmente, uma leve alta, seguida, anos depois, de uma tendência de baixa e, por fim, se estabilizou em níveis bastante próximos aos apresentados em diversos outros países europeus. Cabe ressaltar, aqui, no entanto, que dados acerca do consumo de substâncias ilícitas são sempre imprecisos, tendendo a ser menores do que o consumo real, já que não são todos os usuários que admitem, quando perguntados, fazerem uso de tais substâncias, temendo possíveis conseqüências de ordem legal. Essa ressalva feita, menciono um recente estudo comparativo entre as cidades de São Francisco, nos EUA, onde o consumo de maconha é proibido por lei, e a cidade holandesa de Amsterdã, onde a maconha pode ser comprada legalmente. Os realizadores desse estudo apontam uma série de características que permitiriam um comparativo entre essas duas cidades, dentre as quais destacam-se semelhanças nos contingentes populacionais e nos perfis dos grupos sociais que as constituem (ambas são cidades universitárias, reconhecidas por apresentarem uma cultura liberal com histórico de manifestações da contracultura). Diferem, então, substancialmente, nas políticas públicas adotadas acerca do comércio e do uso de drogas: enquanto em Amsterdã o modelo é tolerante e liberal, em São Francisco vige o duro e inflexível proibicionismo que tem caracterizado as políticas norte-americanas nesse assunto. Desconsiderando os índices de consumo por parte de turistas estrangeiros, essa pesquisa apontou uma leve prevalência de consumo de maconha entre os moradores de São Francisco em relação aos de Amsterdã. Surpreendente? Talvez. Mas, com certeza, um indicativo de que não é a legalidade ou ilegalidade que faz com que o consumo de uma substância como a maconha aumente ou diminua. É necessário, contudo, que se relativize um pouco esse furor estatístico que acompanha a divulgação de dados como esses. Isso porque é sabido, em ciências sociais, da dificuldade em se estabelecer métodos de pesquisa tão precisos e abrangentes que permitam generalizações e comparações entre realidades muitas vezes mais diversas do que pode parecer à primeira vista. Assim, se o estabelecimento de comparações entre o modelo holandês e o modelo norte-americano não escapa dessa ordem de dificuldades, o que se dirá de comparações entre esses modelos e o caso brasileiro? Dito isso, quero manifestar minha discordância em relação às afirmações feitas pelo psiquiatra Sérgio de Paula Ramos, quando este utiliza pesquisas (muitas vezes feitas a partir de metodologias questionáveis) acerca do modelo holandês como fundamento para posições que se referem a uma realidade completamente diferente, a brasileira. Ora, no Brasil existe um quadro de violência gerada pelo tráfico de drogas que se constituiu a partir de uma situação de profunda desigualdade social, o que não acontece na Holanda. Enquanto lá as políticas públicas sobre drogas foram constituídas para se reduzir danos causados à saúde pelo uso dos psicoativos (e assim o governo holandês controla a qualidade do produto vendido e investe em prevenção e tratamento da dependência do uso de drogas pesadas), aqui se configura muito mais urgente uma intervenção estatal no sentido de reduzir os danos sociais advindos do tráfico de drogas, muito mais nocivo à nossa sociedade do que os danos (controversos) que a maconha causaria aos seus usuários. Então, não se trata de observarmos os desdobramentos da regulamentação da venda de maconha na Holanda e esperar tirar deles lições para o quadro brasileiro: são realidades cultural, histórica, econômica e políticamente muito diferentes.

Scliar aponta, em seu texto, que a medida mais eficiente para diminuir o consumo de substâncias psicotrópicas seria o aumento do preço e cita o caso do tabaco como exemplo. Discordo. O aumento do preço do tabaco só fez aumentar o contrabando desse produto. O que, de fato, tem contribuído para a diminuição do consumo do cigarro na nossa sociedade é o esclarecimento da população acerca de seus malefícios, as campanhas massivas levadas à cabo por governo e sociedade civil organizada e a adoção de leis mais duras, que vetam o consumo em determinados ambientes. Ou seja, trata-se de um exemplo de redução do consumo de uma droga sem que se tenha apelado a políticas proibicionistas que viriam a fortalecer o mercado paralelo, sem controle do Estado, com venda de produto muitas vezes adulterado e com uma intervenção indevida do poder público nas liberdades individuais.

Creio, pois, que é a própria lógica utilizada para se pensar os problemas causados pelas drogas que carece de certos reparos, pois não se está atingindo o ponto nevrálgico da questão. Quando a preocupação das autoridades está voltada apenas para a necessidade de diminuição do consumo de psicoativos (preocupação, diga-se, legítima), esquece-se, freqüentemente, que o maior dano à sociedade não vem do consumo, mas do tráfico dos entorpecentes. É uma preocupação elitista a redução dos esforços a tratamentos de saúde para os usuários e repressão para os traficantes. Essa lógica demonstra que os defensores do proibicionismo não estão preocupados com aquelas camadas da população que sofrem os maiores danos, afinal quem morre na guerra das drogas é o morador das comunidades nas quais se instala o tráfico. São essas pessoas que estão realmente pagando (com suas vidas) pela manutenção de políticas equivocadas, que identificam no consumo de psicotrópicos ilícitos um mal absoluto, que demonizam o traficante (o "monstro" corruptor dos nossos filhos) e que crêem possível um mundo sem drogas (geralmente sem as drogas dos outros, mas com as nossas). Em suma, o que se faz aqui é um chamamento à consciência, para que a sociedade perceba o que de fato está acontecendo: um genocídio nas periferias, que poderia perfeitamente ser evitado, caso o problema fosse enfrentado de forma sistemática e em suas raízes. Repito: a questão das drogas ilícitas diz menos respeito aos próprios psicoativos e muito mais ao fato de seu comércio e consumo ser proibido, condição sine qua non para o estabelecimento das cadeias criminosas ligadas ao tráfico e responsáveis por muito mais mortes, traumas e tragédias do que o uso das substâncias em questão.

Além do mais, e aqui faço referência à maconha, trata-se de uma planta de uso milenar, com uma série de aplicações terapêuticas reconhecidas. A maconha é um medicamento eficaz no tratamento do glaucoma, da esclerose múltipla e é também muito útil como redutor dos enjôos causados nos tratamentos quimioterápicos e como estimulante do apetite de pacientes portadores do vírus HIV. Essas são propriedades medicinais já reconhecidas e exploradas em diversas partes do mundo, onde medicamentos à base de canábis estão chegando ao mercado. Além disso, há uma série de propriedades da maconha que indicam outros usos terapêuticos possíveis, carecendo sua confirmação de mais pesquisas e testes. Ou seja, não se trata de uma substância desprovida de qualquer interesse. Ao contrário, a canábis tem sido citada em compêndios de medicina chinesa e ayurvédica há alguns milhares de anos e, sendo seu uso tão antigo, jamais se teve notícia de problemas sérios à saúde por ele causados, de modo que é lícito afirmar tratar-se de uma droga de uso relativamente seguro, ao contrário de muitos medicamentos hoje disponíveis em nossas farmácias e drogarias. Mas então, por que a maconha é proibida?

O diretor canadense de cinema Ron Mann, intrigado com essa pergunta, realizou, no ano 2000, um documentário chamado "Grass", objetivando justamente investigar e reconstituir a história da proibição da maconha nos EUA. Trata-se de uma ótima fonte de informação sobre o assunto, pois evidencia o jogo de interesses que foi armado em torno da proibição dessa planta. O cânhamo sofreu oposição das indústrias de papel, têxtil, petrolífera e farmacêutica e se constituiu em alvo de uma onda de preconceito contra os imigrantes mexicanos, seus principais usuários. Em seu filme, Mann apresenta, passo à passo, a construção do estigma e da desinformação que, até hoje, cercam o assunto. Foi assim que, em 1948, o governo norte-americano, fortalecido após o triunfo na Segunda Guerra e assumindo definitivamente a hegemonia política, econômica e militar no mundo, fez aprovar na ONU uma série de restrições à canábis em nível mundial, sem que pesquisas aprofundadas tivessem sido feitas. A maconha foi classificada como droga de alta periculosidade e colocada lado a lado com substâncias como a heroína. Diga-se, é plenamente questionável que se qualifique a maconha como uma substância "perigosa" e "aditiva". Não há registro de casos de overdose por uso de maconha, condição necessária para atestar a periculosidade de qualquer substância. Por outro lado, sabemos dos perigos envolvidos com o uso de antidepressivos, ansiolíticos e uma série de drogas caras que os laboratórios farmacêuticos disponibilizam no mercado. Quanto ao suposto caráter aditivo da maconha, é absolutamente controverso. Pesquisas já compararam o tipo de dependência psicológica que o uso reiterado de canábis pode causar com a dependência apresentada por inveterados bebedores de café ou consumidores de chocolate, muito diferente, portanto, do triste quadro de dependência física a que estão sujeitos os usuários de heroína, crack ou tranqüilizantes. Mas como essa desinformação em torno da maconha se perpetua? Poderia se falar em uma grande convergência de interesses políticos e econômicos que envolveriam desde o governo norte-americano até os grandes laboratórios farmacêuticos que vendem produtos caros e nocivos para tratar uma série de males que já foram, em outros tempos ou culturas, tratados com o uso de canábis. Mas não quero aqui subsidiar teorias da conspiração nem apontar "grandes vilões" nos meios políticos ou entre corporações multinacionais. O fato é que quando médicos atribuem ao uso de maconha quadros de depressão ou outros efeitos nocivos ao psiquismo e ao sistema nervoso dos usuários, estão esquecendo de uma linha de raciocínio bastante forte nas áreas das ciências sociais, históricas e antropológicas, que é a que se refere ao poder de sentido que a cultura detém sobre os indivíduos. Assim, o significado que a cultura atribui a certas substâncias ao classificá-las como "droga" ou "medicamento" condiciona, em grande parte, os resultados de seu uso. Ou seja, o usuário de maconha, em nossa sociedade, é estigmatizado e o uso que ele faz da substância em questão é classificado como doentio e criminoso, independente da qualidade desse uso e da relação do usuário com a planta. O resultado é um quadro depressivo advindo não de propriedades intrínsecas à maconha, mas do meio social, que passa a classificar o usuário como um doente, um criminoso, ou, no mínimo, um não-sujeito, um indivíduo que perde todo o crédito perante o grupo social do qual faz parte. Daí para o isolamento da família e de todos aqueles que o condenam por uma prática que, muitas vezes, lhe é terapêutica ou apenas lúdica, é um curto passo. Quer dizer, o que estou frisando é o poder dos códigos culturais, que dão sentido às nossas práticas e às nossas crenças. Se isto não for levado em conta, como haveremos de explicar que o uso de maconha só tem sido um problema na nossa sociedade ocidental contemporânea? Como dar conta de usos tradicionais em outras culturas, que tomaram a maconha como um laço social, como nós fazemos aqui no Rio Grande do Sul com o chimarrão? É necessário que se perceba que é muito mais a posição das coisas nos sistemas de significado que cada cultura constrói do que as próprias coisas que vão pautar nossas concepções e juízos, tanto morais quanto, muitas vezes, mesmo científicos. De outro modo, como compreender uma pesquisa levada à cabo nos EUA e na Jamaica, segundo a qual a maconha fumada no primeiro país causa depressão, desmotivação e ansiedade, enquanto a que é fumada no segundo constitui um laço social entre comunidades de trabalhadores que a fumam para enfrentar longas jornadas de trabalho e, também, para relaxar e estar entre seus familiares no fim do dia? O estudo do contexto cultural, me parece, nos oferece respostas mais precisas do que o isolamento de uma substância num tubo de ensaio a fim de compreender suas características "intrínsecas" e "absolutas". Não podemos esquecer que os usuários de drogas não são organismos a serem estudados em tubos de ensaio em laboratórios, mas pessoas que participam do meio social, que dão significado a suas experiências e que, no convívio com seus pares e com sistemas de valores menos ou mais compartilhados no interior das sociedades, constituem saberes. É por isso que na nossa sociedade ninguém vai apontar para o uso ritual do vinho na tradição cristã como um uso de droga. O vinho é uma bebida alcoólica. Bebidas alcoólicas são drogas. Mas opera aí um código cultural, um sistema de significados que ultrapassa nossas análises meramente químicas e que faz do uso do vinho um elemento mais ligado ao sagrado do que à alteração da consciência. Isso tudo, enfim, apenas para conter arroubos do tipo "x causa y em z"" e lembrar que, quando se fala em uso de drogas, em alteração da consciência, é impossível não considerar as sobredeterminações que advêm dos diversos contextos culturais e dos sistemas simbólicos e de significação. Em suma, é muito mais lícito afirmar que é a nossa classificação acerca do uso da maconha (e tudo que essa classificação acarreta em termos de comportamentos individuais e sociais) que afeta o psiquismo e o sistema nervoso das formas descritas pelo modelo de medicina atualmente em vigência em nossa sociedade. Com certeza um médico ou terapeuta vinculado a uma outra tradição médica, que cultive concepções diversas de "saúde" e "doença", poderia não concordar com as descrições feitas pela nossa medicina. Trata-se de sistemas diferentes, que partem de pressupostos diferentes, constroem conceitos diferentes e, cada qual a sua maneira, atingem seus objetivos (do contrário não se estabeleceriam nas sociedades em que se estabeleceram). Reflexões pertinentes acerca da medicina e suas repercussões políticas na sociedade brasileira podem ser encontradas no valioso trabalho daquele que talvez seja o maior historiador do Brasil na atualidade, Sidney Chalhoub, em seu livro "Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial".

Um outro ponto que merece esclarecimentos é aquele que se refere à maconha como "o primeiro passo para uma dependência química que incluirá outras drogas". Ora, mantendo essa lógica de pensamento, a primeira medida a ser tomada pelas autoridades deveria ser a luta pela proibição do álcool e do tabaco, pois são essas drogas que perfazem o verdadeiro passo inicial da grande maioria dos jovens que buscam outros estados de consciência e de relação com o mundo. Como não acredito em simplismos dessa ordem, prefiro fazer menção a uma linha de pesquisa que contradiz totalmente essa afirmação da maconha como "porta de entrada" para o "mundo das drogas". Essa linha se apresenta sob o nome de terapia de substituição e tem obtido resultados auspiciosos. Consiste no tratamento de dependências químicas pesadas, principalmente a dependência do crack, a partir da substituição do uso dessa droga pelo uso da maconha. Um alto índice de dependentes de crack acabou abandonando a droga, trocando-a pela maconha e, destes, uma alta porcentagem, após um certo tempo, abandonou também o uso da canábis, atingindo a abstinência. O que isso quer dizer? Isso quer dizer que a maconha não é porta de entrada para outras drogas mais pesadas, já que temos um exemplo contundente de seu uso contrário, como porta de saída. O que acontece é que algumas pessoas que passam a usar drogas estão à procura de algo que não sabem o que é. Essas pessoas vão passar pelas mais diversas substâncias em busca, talvez, de si mesmas (ou de experiências psíquicas profundas), e pouco importa se usaram maconha e depois cocaína ou álcool e depois crack. O que quero dizer é que, tomando casos como esses por regra, não estamos dando conta do nosso objeto de estudo, pois trata-se de exceções. Além do mais, como se pode atribuir ao uso de maconha um uso posterior de, por exemplo, cocaína? Mesmo que o indivíduo não fosse usuário anterior de álcool ou tabaco (o que é raro de acontecer), sendo apenas usuário de maconha, qual é a correlação causal entre o uso de maconha e o uso de outra substância? Não temos elementos suficientes para atribuir à maconha uma propriedade de introdução do usuário a outras substâncias, mesmo porque cada substância contém um universo de efeitos e, também, de significados determinados e, muitas vezes, quase excludentes entre si (por exemplo, usuários de maconha geralmente se abstêm do uso de cocaína, tanto por se tratar de uma droga de efeitos bastante diferentes dos causados pela maconha, quanto pelo fato de os sistemas simbólicos construídos em torno dessas subculturas diferirem substancialmente entre si). Enfim, não podemos tomar o caso de um jovem morto por overdose de heroína que, antes de se tornar usuário dessa droga usava maconha, e afirmar que foi por causa do seu uso de maconha que ele passou ao uso de heroína e, por fim, morreu. E isso tomando um exemplo inverossímil como este, no qual o sujeito não havia passado pelo uso de tabaco e, principalmente, de álcool, as duas drogas lícitas que, na maioria dos casos, são as primeiras a serem experimentadas. Deste modo, tendo a desconfiar de pesquisas que apontam para relações de causalidade entre usos de diferentes substâncias, pelo simples fato de que não dispomos de elementos suficientes para fazer disso uma regra. Então, quando Scliar remete a um dado (60% de 3 mil jovens estudados em Minas Gerais teriam passado a usar outras drogas após se tornarem usuários de maconha) eu me pergunto de que modo seria legítimo afirmar que foi por causa do uso de maconha que esses jovens passaram a usar outras drogas, se tivermos em vista o altíssimo número de variáveis possíveis aí envolvidas ( que vão desde outras substâncias, a interesses particulares, trajetórias específicas, oportunidades diversas, contextos únicos, subjetividades, enfim, incontáveis candidatos a fator determinante e a elo causal). Novamente as sobredeterminações...

Discordo, também, de Moacyr Scliar, quando este defende a descriminalização do uso de maconha. Quer dizer, sou favorável à descriminalização urgente do uso dessa planta somente enquanto primeira etapa de um processo maior, que inclua, também, e posteriormente, a regulamentação da produção, do comércio e do consumo e a conseqüente legalização. Isso porque unicamente descriminalizar o uso não vai atacar o problema maior, que é o tráfico. Ao contrário, poderá vir a fortalecê-lo, já que o usuário seguirá comprando dos traficantes (por falta de outra alternativa) e financiando a cadeia criminosa gerada pela inexistência de um comércio legal do produto. Assim, a manutenção do monopólio da venda de drogas nas mãos das quadrilhas criminosas, aliada à descriminalização do uso, me parece mais um incentivo ao consumo e um incremento nos lucros do tráfico do que uma medida adequada. Novamente, o foco da ação está equivocado, pois considera o uso de drogas como o problema maior e o tráfico como uma decorrência desse problema. Conforme já apresentei aqui, o uso de drogas não constitui, necessariamente, um problema (o que ocorre somente em alguns casos), sendo prática comum na história humana, enquanto o tráfico, fenômeno mais recente, surge como o verdadeiro causador do dano mais profundo à sociedade, atingindo praticamente todas as suas parcelas constitutivas. Também me parece equivocada a qualificação do usuário de drogas como um doente. No mínimo, é simplista, ao não aprofundar a questão. Quem é usuário de drogas? Dificilmente se possa apontar um único indivíduo que não faça uso de alguma substância psicoativa. Então somos todos doentes? Ou só aqueles que, ao fazerem uso de psicoativos, não conseguem estabelecer uma relação adequada com a substância? E aqui não faço diferenciação alguma entre usuários de drogas lícitas e usuários de drogas ilícitas, pois tanto num quanto noutro grupo encontramos exemplos de usos problemáticos e de usos não problemáticos. Não seria, assim, mais adequado que se classificasse os usos e não as substâncias? Por que as pessoas compreendem facilmente que se possa fazer um uso não problemático de cerveja, mas não entendem como seria possível um uso não problemático de maconha? Por que todo usuário de droga ilícita seria doente e somente alguns usuários de drogas lícitas receberiam tal rótulo? Me parece que "doente" é o eufemismo da vez, mais apropriado aos nossos tempos do que "criminoso", mas tão estigmatizante quanto. De um modo ou de outro, trata-se de um indivíduo que perde o direito de gestão sobre a própria vida, que passa a sofrer a intervenção de outrem, seja o policial e o juiz, seja o médico. Não estou, aqui, obviamente, negando a existência de casos problemáticos envolvendo uso de drogas (principalmente o álcool) e tampouco quero negar o papel fundamental que os profissionais da Polícia, do Judiciário e os médicos desempenham em atenção a esses problemas. O ponto aqui é tentar compreender melhor as classificações que fazemos e que tipo de conseqüências elas podem gerar. Assim, considero bastante inadequado e incoerente tratar todos os usuários de algumas drogas como doentes e aceitar a possibilidade de um uso moderado e adequado de outras substâncias, sem que se tenha um critério legítimo para tal distinção. Proponho, então, que se pense a classificação a partir da qualidade do uso e não a partir da substância usada, o que abre a possibilidade de se vislumbrar usos não problemáticos de vários psicoativos e não apenas daqueles arbitrariamente definidos como lícitos. O próprio conceito de dependência, aliás, é controverso e utilizado de forma incoerente: enquanto a afirmação, controversa, de que a maconha causa dependência fundamenta sua proibição, a afirmação, comprovada, de que o álcool causa dependência física, fundamenta, no máximo, leves restrições à publicidade dessa droga na mídia. Essa adoção do termo "doente" para qualificar o usuário de substância ilícita, juntamente com a idéia de descriminalização sem regulamentação e legalização, me soa mais como uma tentativa de livrar a barra dos filhos da classe média de serem criminalizados do que como uma tentativa séria de resolver os problemas relacionados ao uso de drogas. Se assim não fosse, o tráfico seria visto como o problema majoritário (e não o consumo de drogas), o que acabaria conduzindo a um processo de regulamentação do comércio dos psicotrópicos hoje ilícitos. Mas, como o tráfico atinge mais os moradores da periferia, a elite se preocupa mais com o consumo, atacando o tráfico unicamente com medidas repressivas que, há muito já sabemos, não constituem estratégia eficiente de enfrentamento do problema. E aí toco em outro ponto vital: a repressão. Já foi abordado nesse texto esse tema da ineficácia de se reprimir o tráfico, mas o retomo agora, brevemente.
Penso que encontra-se em processo de construção no imaginário social a figura do traficante como a representação do mal. Como diz Scliar, trata-se de "pessoas que se beneficiam da desgraça dos outros". Essa me parece uma boa definição, não para o traficante, mas, quem sabe, para alguns políticos ou banqueiros. Ou, também, para o mandatário do tráfico, aquele que leva o dinheiro (ou alguém acredita que o dinheiro fica na favela)? Assim, penso que a repressão ao tráfico, no modo como hoje em dia é realizada, constitui um absurdo desperdício de dinheiro público, já que se as pesadas quantias investidas mundialmente na guerra às drogas tivessem sido aplicadas em projetos de distribuição de renda e em medidas sociais que visassem à redução da desigualdade (esta sim, monstruosa), com certeza hoje em dia não teríamos filas em busca de emprego no tráfico de drogas. Já o consumo dessas substâncias estaria regulamentado, constituindo um problema infinitamente menor do que o que temos hoje, com a máquina do tráfico em pleno funcionamento, corrompendo autoridades, exterminando comunidades e partindo a sociedade brasileira em dois blocos que cada vez menos se mostram capazes de estabelecer algum tipo de comunicação entre si: "nós e eles", "os cidadãos de bem e os bandidos"...
Em última análise, o que temos de ter em mente é que ninguém nasce criminoso, ninguém nasce traficante. As pessoas se movem dentro de campos de possibilidades e, na conjuntura atual, o tráfico de drogas constitui uma possibilidade considerável para milhares de excluídos do "maravilhoso" mundo dos shopping centers. Assim, não considero a repressão pura e simples a melhor alternativa de que dispomos. Ao menos, não enquanto tivermos condições de operar mudanças, de acreditar em transformações e de manipular nossas possibilidades. Ora, o modelo vigente de política de drogas está a causar danos maiores do que o mal que ele se propõe a combater. Além disso, parece ilusório (e mesmo indesejável, pensem) pretender um mundo isento do uso de drogas. Reelaboremos nossos conceitos. Reconfiguremos nossos sistemas de significação. A lógica do pensamento sobre esse assunto está impregnada de incoerências. As drogas sempre tiveram, e ainda têm, algo a nos oferecer. Podemos acomodá-las, como fazemos com algumas dentre elas, no interior do nosso sistema. Podemos encontrar meios de regulação razoável desses conteúdos, de modo a reduzir os danos associados ao uso dessas substâncias sem perder as possibilidades que elas nos abrem (possibilidades terapêuticas, lúdicas, rituais, cognitivas). Não somos tão pequenos. Já o tráfico e a violência, estes não têm aspectos positivos a oferecer. A sociedade deve combatê-los com o oferecimento de oportunidades melhores àqueles que encontram nessas práticas a sua defesa diante das dificuldades. Enfim, me parece que temos alternativas. Ainda.

Droga: permitir ou reprimir?


Moacyr Scliar


Periodicamente volta à cena o assunto da liberação da droga. A principal razão é, obviamente, o insucesso das campanhas de repressão ao tráfico em todo o mundo. A revista Newsweek recentemente publicou matéria sobre a Operação Colômbia, que os Estados Unidos conduzem naquele país com apoio do governo colombiano. A principal atividade é a eliminação dos arbustos de coca, mediante aspersão de substâncias químicas. Cerca de US$ 50 bilhões foram gastos nisso – e a produção sequer diminuiu. O que é explicável: enquanto houver demanda, e a principal demanda está nos Estados Unidos, haverá oferta. É muito difícil convencer um camponês pobre a desistir de um cultivo que lhe proporciona um rendimento certo. Por que, então, não deixar o consumo ser regulado pelo mercado, como acontece com o tabaco e o álcool? Esta pergunta foi formulada por ninguém menos que o pai do liberalismo norte-americano, o professor de economia Thomas Friedman. E é repetida por ativistas no mundo inteiro.

Mas, na conjuntura atual, trata-se de um equívoco, diz o psiquiatra Sérgio de Paula Ramos, recentemente eleito presidente da Associação Brasileira de Estudos sobre Álcool e Outras Drogas. Ele aponta um exemplo mundialmente conhecido, o da Holanda. Há alguns anos, aquele país decidiu legalizar a venda da maconha, desde que feita em locais especiais e sob controle governamental. O controle funcionou – 80% dos usuários são registrados – , mas o consumo aumentou em nada menos do que 400%. Isto comprova um fato já constatado em relação ao tabaco: a medida mais eficiente para diminuir o consumo é o aumento do preço do cigarro. Quando dói no bolso, as pessoas fumam menos.

É preciso, aliás, não se enganar com a maconha. É uma substância perigosa, aditiva; já em 1948 a Carta da ONU recomendava aos países-membros a restrição de sua venda. Além dos numerosos efeitos sobre psiquismo e sistema nervoso, a maconha pode representar o primeiro passo para a dependência química que incluirá outras drogas. Isto aconteceu com 60% dos jovens estudados em Minas Geais.

Descriminalizar o uso está certo: não tem sentido prender uma pessoa que é doente, que está agindo sob o efeito de uma compulsão química. Mas tem sentido, sim, reprimir a ação das pessoas que se beneficiam da desgraça dos outros. Não é uma alternativa eficaz, mas, enquanto outra não surgir, é a melhor de que dispomos.