Em um artigo chamado "Boaconha", publicado em 12 de junho de 2005 no jornal Zero Hora, o psiquiatra e psicanalista Sérgio de Paula Ramos teceu uma série de considerações a respeito da maconha, associando-a a diversas mazelas que afligem nossa sociedade. Partiu ele de declaração dada recentemente pelo ministro da Cultura, Gilberto Gil (na qual este afirmou ter consumido maconha até os 50 anos de idade), e considerou tal afirmação como um mau exemplo, passível, inclusive, de demissão. Frisando o caráter ilícito da maconha em nosso país, o psiquiatra se esquivou de uma discussão mais profunda e esclarecedora sobre a grande diversidade de usos, significados e contextos relacionados a essa substância. Parece ignorar a arbitrariedade e a ausência de embasamento científico confiável na determinação da legalidade ou ilegalidade das substâncias psicotrópicas - que é muito mais fruto de interesses políticos e econômicos do que de um interesse na melhoria da qualidade de vida da população. Consciente dessa arbitrariedade, Gilberto Gil não deve pretender passar a mesma mensagem "do adolescente que diz 'não dá nada'", como especulou o psiquiatra Sérgio de Paula Ramos. O que Gil parece querer dizer, no nosso entendimento, é que ter uma trajetória de sucesso, ser Ministro da Cultura e artista de reconhecimento mundial não é incompatível com a prática de fumar maconha. Gilberto Gil é, inegavelmente, um vencedor. E fumou maconha até os 50 anos. O que isso significa? Talvez só o próprio ministro possa dizer. Só ele sabe a parte que cabe à maconha em sua vida e em seu sucesso.
Tudo isso para dizer que não existe um uso para a maconha - que necessariamente leva ao abuso e à degradação. Existem usos diversos, muitos deles não problemáticos. Nesse sentido, seria de se pensar se, ao invés de ter que "ser demitido no ato, pelo mau exemplo", o ministro Gil não estaria se constituindo em um bom exemplo, já que nos permitiria uma reflexão sobre as possibilidades de usos não problemáticos dessa planta. Reflexão esta, por sinal, de realização muito mais urgente por parte dos nossos cientistas, tendo em vista a questão social do abuso de drogas, do que a taxativa condenação moral dos usuários, que só vem a reforçar preconceitos. Aliás, em "qualquer país medianamente sério", as políticas de drogas estão sendo abrandadas devido ao reconhecimento de que a proibição do uso é responsável por danos sociais maiores do que os advindos do próprio uso das substâncias.
Dentre esses danos sociais, acima referidos, um dos maiores talvez seja a superlotação dos presídios que, originalmente, deveriam ser instituições sócio-educativas. Na verdade, porém, constituem verdadeiros depósitos humanos, onde os apenados parecem receber da sociedade um adicional a suas penas de reclusão, sob forma de condições subumanas de sobrevivência. O que há com o Brasil, que insiste em uma lógica meramente punitiva sem jamais olhar para as suas responsabilidades no destino desses milhares de encarcerados? Hoje em dia, num país assolado por graves desigualdades, muitas vezes o tráfico de drogas surge como a única alternativa para jovens em situação de vulnerabilidade social. O que o Estado faz ao aplicar a sua atual política de drogas é deixar de reconhecer a sua parcela de responsabilidade nesse quadro e, pior, expiá-la (como tantas vezes na nossa história) sobre o negro pobre do morro.
Sérgio de Paula Ramos nos esclarece, a seguir, que maconha é uma droga, mas não faz menção a outras drogas, tão ou mais presentes no nosso cotidiano, como é o caso dos próprios medicamentos vendidos em drogarias e receitados pelos especialistas. Estes medicamentos, aliás, podem causar dependência muito mais intensa do que a causada pela maconha (em verdade, não há consenso se a maconha causa ou não algum tipo de dependência), e em altas doses podem ser letais (o que jamais pode acontecer com a mencionada erva). Mas são drogas que, receitadas em dosagens apropriadas, têm uma função terapêutica reconhecida. Assim como elas, a maconha tem, também, propriedades terapêuticas exploradas há séculos pela humanidade e cientificamente comprovadas: a maconha é utilizada com sucesso, hoje em dia, no tratamento do glaucoma, da esclerose múltipla, de pacientes em tratamento quimioterápico e como redutor dos efeitos adversos causados pela ingestão do coquetel utilizado por portadores do vírus da Aids, além de possuir uma série de outras propriedades terapêuticas que ainda não tiveram sua eficácia comprovada. Isto justamente por que, sendo a maconha proibida, no Brasil inexistem incentivos à pesquisa acerca de suas propriedades e potencialidades medicinais. Sendo assim, não seria o caso de pensarmos em outras maneiras de se regular o acesso a essa substância?
No que se refere às preocupações demonstradas pelo psiquiatra em relação aos adolescentes, parece que ele não chega a tocar nos problemas que a própria imprensa registra como os de maior gravidade, a saber: por um lado, a legião de jovens que, abandonados por suas famílias e ignorados pelo Estado e pela sociedade, encontram no tráfico de drogas a melhor alternativa de vida; e, por outro, os filhos da classe média, que têm acesso facilitado ao álcool e aos automóveis.
Os argumentos utilizados por Sérgio de Paula Ramos se fundam em premissas perfeitamente contestáveis empiricamente,já que a maconha tem sido utilizada há séculos, para os mais diversos fins, sem jamais ter se constituído em um problema social desagregador de comunidades (ao contrário, ela tem um histórico de uso agregador, apresentando em certas sociedades uma função de laço social, muito semelhante à cumprida pelo vinho ou pelo chimarrão). Foi, portanto, em meados do século XX, que teve início a construção do estigma que até hoje reveste essa planta, o qual enfatiza aspectos negativos (muitas vezes baseados em preconceitos, já que o uso da maconha se dava, até os anos 60, principalmente entre as populações pobres e de origem africana) e negligenciando seus aspectos positivos, como os usos medicinal e religioso. Mesmo o uso recreativo, que hoje se sabe ser menos nocivo à saúde do que o uso do álcool, por exemplo, foi historicamente mistificado e demonizado, o que só contribuiu para a manutenção de preconceitos e de políticas geradoras de problemas muito maiores do que aqueles causados pelo próprio uso da planta. A partir da constituição e aceitação social desse estigma, se perdeu a clareza necessária para um aproveitamento benéfico das potencialidades do cânhamo. A própria História do Rio Grande do Sul mostra o cânhamo sendo usado, até o século XIX, na confecção de tecidos, produto para o qual ele constitui matéria-prima econômica e ecológica. Esse é um exemplo de um entre muitos aproveitamentos possíveis do cânhamo, que ficam inviabilizados devido à desinformação que se constituiu a partir desse processo de estigmatização.
Por outro lado, pesquisas científicas comprovaram que a maconha não aumenta as chances do usuário tornar-se esquizofrênico, como afirmou Sérgio de Paula Ramos. O que ela faz é acelerar o aparecimento dos sintomas em pessoas que já tenham a doença em estado de latência. Além disso, é curioso que a maconha seja apontada objetivamente como possível causadora de depressão, tendo em vista seu uso milenar em diversas culturas como antidepressivo, relaxante, calmante e ansiolítico, no que constituiria um medicamento menos nocivo do que os fármacos atualmente utilizados para esses fins (é de conhecimento geral os problemas muitas vezes decorridos da administração de medicações como Prozac, Lítio, etc). O problema da argumentação do psiquiatra é que ele não leva em consideração os aspectos culturais relacionados ao uso da maconha, tão ou mais condicionantes que os aspectos bio-químicos, e já comprovados em diversas pesquisas sobre a cannabis e seus usos. Nesse sentido, a depressão que o psiquiatra aponta como resultado do uso da maconha, não poderia ser de forma objetiva atribuída unicamente a esta. Talvez um modo mais eficaz para se compreender a questão fosse não considerar somente a substância e um organismo em particular, mas observar toda uma teia de significados socialmente construídos que interferem na relação subjetiva do usuário com essa substância. Assim, a depressão pode ser oriunda não da maconha em si, mas do modo como o usuário é estigmatizado e passa a ser tratado a partir da condenação moral que sofre quando começa a fazer uso da planta. É comum que, tomando consciência desse estigma, ele fique isolado da família e da sociedade, que passam a tratá-lo como um doente, um grande desgosto, ou até como um criminoso. Parece claro que muito do que se atribui a propriedades químicas da maconha é, na verdade, fruto do tratamento social que é dado a ela e a seus usuários. Do contrário, como se explicariam os resultados de pesquisas comparativas feitas entre usuários norte-americanos e usuários jamaicanos? Segundo essas pesquisas, no primeiro caso a maconha seria um fator de desagregação familiar e uma fonte de prejuízos sociais, enquanto no segundo ela constituiria, ao contrário, um fator de agregação familiar e coesão social. Fica mais fácil, assim, compreender os motivos pelos quais, como observou Sérgio de Paula Ramos, os adolescentes se afastam afetivamente de seus pais e partem para o uso de substâncias ilícitas. Ora, longe de ser um aspecto universal das relações familiares, esse afastamento se dá unicamente na nossa sociedade, que atribuiu às drogas um caráter subversivo e desagregador, o que, aliado à proibição do consumo, torna essas substâncias extremamente convidativas para os adolescentes. Nessa linha de raciocínio, é a reação padronizada ao estigma (que faz com que os pais se horrorizem diante da possibilidade de seus filhos fumarem maconha) que contribuiria decisivamente para esse afastamento afetivo.
Outro ponto a se questionar no texto de Sérgio de Paula Ramos é aquele no qual ele se refere à maconha como porta de entrada para outras drogas. Em sentido oposto, estudos sobre a terapia de substituição (na qual o uso de substâncias como o crack vai sendo paulatinamente substituído pelo uso da maconha) têm tido resultados animadores, ao contrário dos obtidos pelos métodos tradicionais, que se baseiam em internação, exigência de abstinência total e medicações como o Diazepam. Nessa perspectiva, que vem sendo confirmada pela prática, a maconha constituiria, não a porta de entrada, mas a porta de saída do uso de drogas mais pesadas.
Assim, parece mais válido, em vez de propôr um paternalismo generalizado na sociedade, como sugere o psiquiatra, tentar compreender mais a fundo a questão das drogas e todas as suas implicações sociais e morais. Ao se erigir em agente moralizador de figuras como Lula, Edinho, Gilberto Gil e Ronaldo, Sérgio de Paula Ramos se esquiva de abordar o tema do uso de drogas em uma dimensão mais ampla, na qual os significados sociais e o tratamento legal dados a ele em nada contribuem para a produção de soluções. O que está "acontecendo com o Brasil" é uma total incapacidade de percepção dos danos causados, nas mais diferentes esferas, pela política de drogas atualmente em vigência, e por abordagens moralizantes e higienistas, que desconsideram toda essa gama de aspectos, dignos de reflexão, aqui mencionados (desconsideram, principalmente, a desproporção que há entre os reais malefícios causados pelo uso da maconha e a severidade da legislação que a regulamenta). Nesse sentido, atribuir o aumento dos índices de consumo de drogas por adolescentes e dos índices de violência urbana a uma "falta de pai" é, no mínimo, simplismo e ingenuidade. Não há pai que resolva uma situação histórica de desigualdade social, preconceito e indiferença, como a que vivenciamos e vemos se agravar no Brasil nas últimas décadas. Não cometamos o disparate de atribuir a uma planta a responsabilidade por nossos erros políticos, nossos preconceitos, nossa incapacidade de aceitar a diferença e de conviver com a diversidade e, principalmente, nossa inaptidão em construir políticas públicas e práticas sociais inclusivas. Os índices de violência urbana e consumo de drogas crescem, entre outras razões já apontadas, porque nosso sistema de valores está a formar sujeitos completamente incapazes de gerir suas próprias vidas, precisando sempre da velha tutela paternalista, a mesma que o psiquiatra está a propôr como solução dos nossos problemas.
Não se trata aqui de incentivar o uso de maconha ou mesmo de minimizar os prejuízos que podem advir do seu uso abusivo, mas de ressaltar o equívoco do tratamento dado atualmente para essa questão (equívoco este que só vem a ser confirmado pelo constante crescimento dos índices de consumo de drogas e da violência urbana decorrente da ilegalidade desse consumo). Deste modo, não é com abordagens maniqueístas ("boa-conha" ou "má-conha") que se vai produzir soluções, mas através de uma política que regulamente a produção, a venda e o consumo da maconha, retirando-a da esfera ilegal, onde produz uma série de danos sociais perfeitamente evitáveis, e trazendo-a para onde o Estado - e não o narcotráfico - possa geri-la. Pensemos nisso.
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