Wednesday, February 22, 2006

Contribuição a um debate sobre política de drogas no âmbito do Plano Nacional de Juventude

O ser humano sempre utilizou substâncias alteradoras da consciência. Os registros mais antigos do uso de drogas datam de cerca de cinco mil anos, na China, Egito e Suméria. Nas sociedades primitivas ao redor do mundo, uma infinidade de substâncias alucinógenas foram, e ainda são, empregadas em cerimônias mais ou menos secretas. Na Índia, os hindus utilizam a maconha pelo menos uma vez por ano, e os Rastafaris jamaicanos consideram esta mesma substância como sendo um poderoso elo de ligação entre o homem e Deus, chamado por eles de Jah. Contemporaneamente temos os grupos que utilizam o Ayahuasca, também conhecido como Santo Daime. Enfim, os exemplos do uso religioso e cultural de substâncias psicoativas são inúmeros.

Apesar de serem conhecidas e utilizadas ao longo de toda a história da humanidade, provavelmente nunca se falou tanto em problemas relacionados às drogas. A própria terminologia gera discussões intermináveis, e definir um indivíduo como “usuário”, “viciado” ou “dependente” fala muito mais do sujeito que define que do objeto definido. A psicologia, por exemplo, vai entender esta questão a partir do ponto de vista das diferentes escolas. Já no campo da medicina, onde o tema do uso indevido de drogas somente começou a ser desenvolvido com mais seriedade a partir do século XVIII, também não há consensos, e encontramos desde médicos que recomendam o uso de maconha como auxiliar no tratamento de problemas decorrentes da Aids[1], até outros que desconsideram a possibilidade de uso recreativo de substâncias ilícitas, diagnosticando todos os indivíduos que se utilizam destas substâncias como “dependentes químicos” ou “toxicômanos”. No campo do Direito, há também uma multiplicidade de visões, que vão do modelo proibitivo e repressivo, que recomenda penas restritivas de liberdade ao usuário de drogas, até o outro extremo, onde encontramos os que defendem uma legalização ampla, geral e irrestrita. No caminho do meio, temos a vertente da descriminalização[2] passando, ainda, pela concepção de justiça terapêutica[3].

Em meio a uma repressão ineficiente, justificada legalmente, porém cada vez mais questionada politicamente, o tráfico move-se com extrema agilidade. Utilizando métodos modernos, os traficantes de hoje em muito pouco se assemelham aos românticos “Robin Hoods” do passado. Nos anos sessenta e setenta, os traficantes ocupavam um lugar de destaque nas comunidades onde se instalavam, em função da assimilação de algumas tarefas da alçada do Estado, principalmente segurança e assistência. Atualmente, este papel estatal continua sendo exercido; contudo, nota-se uma forte transformação no modelo deste “Estado”: ao passo que antes a atuação destas lideranças se assemelhava àquelas dos governos de orientação populista, hoje vemos que esta semelhança se manifesta através do medo; o exercício do poder por parte dos traficantes, hoje, lembra em muito os métodos de repressão e de terror utilizados por Estados fascistas e ditatoriais.

No entanto, ler a violência urbana apenas como conseqüência do tráfico de drogas é muito simplório, e não condiz com a realidade. Uma leitura um pouco mais sofisticada precisa levar em conta aspectos históricos, por exemplo. Na adaptação cinematográfica de Ruy Guerra para “A Ópera do Malandro”, de Chico Buarque, há uma cena muito interessante: enquanto a personagem Margot prepara-se para o show da noite, duas camareiras conversam enquanto limpam o teatro. Uma diz à outra que o preço da cocaína havia subido: “Um boneco de cinco gramas de cocaína pelo preço de duas cervejas! Assim eu não cheiro mais, nem pra remédio!”. A obra de Chico Buarque, ficcional, desenrola-se em um cenário absolutamente real: o Rio de Janeiro durante a segunda grande guerra. De fato, naqueles dias, podia-se comprar cocaína nas farmácias, a preços módicos. A proibição do uso de algumas substâncias é, pois, uma realidade recente na história brasileira.

Estudos antropológicos atestam a diversidade que marca as práticas sociais relacionadas ao uso de drogas. Segundo Gilberto Velho, uma das principais características da pessoa usuária de drogas é justamente a ausência de características unificadoras que possibilitem a construção de um “perfil” do usuário de drogas. Para demonstrar isto, ele irá acompanhar, ao longo de três anos, um grupo de usuários de drogas da classe média alta carioca. Já Anthony Richard Henman estuda os problemas vividos por uma tribo do Maranhão, onde o uso de maconha é visto com naturalidade. Por fim, como exemplo final desta diversidade, tomemos o estudo de Fernanda Delvalhas Piccolo, sobre as trajetórias sociais de usuários de drogas em um bairro periférico da cidade de Porto Alegre. Comparados estes três estudos, encontramos apenas um elemento unificador: o uso de substâncias psicoativas. Pode-se perceber, portanto, que não existe um modelo fechado através do qual podemos descrever os grupos de usuários de drogas. Não existe “uso” de drogas, e sim “usos”.

Os atravessamentos entre os mundos da droga e o mundo da violência são cada vez mais recorrentes. Se nos anos sessenta e setenta o uso de drogas era relacionado ao movimento de contracultura, na atualidade ele é relacionado, senso comum, à criminalidade. É cada vez mais forte o discurso de que o usuário de drogas sustenta o traficante. Este, por sua vez, é demonizado e visto como o principal responsável pela violência nas cidades brasileiras. E, na tentativa de fazer a imagem do traficante inseparável da imagem do mal, meros peões do narcotráfico causam mais horror à sociedade (talvez devido à sua visibilidade e proximidade?) do que os principais destinatários dos lucros advindos deste negócio milionário. Para a maioria das pessoas, a simples tentativa de se estabelecer relações entre a violência e a ilegalidade do comércio de drogas, em uma comparação rasa com os problemas advindos da Lei Seca nos Estados Unidos, é motivo de escândalo. O moralismo ainda dá a tônica, em um debate que, salvo raras e louváveis exceções, descamba para o lugar comum e para a superficialidade. Em face disto, um Projeto de Lei como o de número 7.134/2002, que versa sobre o fim das penas restritivas de liberdade aos usuários de drogas, é visto como um grande avanço. Segundo a socióloga Vera Malaguti Baptista:

O pessoal que propõe a descriminalização do usuário vai na vertente Posto Nove, falando para um público que já é descriminalizado, que é o usuário de classe média e de zona sul. E que eu não quero criminalizar, veja bem. Mas aí a contrapartida para esse discurso consentido é pena maior para o traficante. Nós não temos um problema de saúde pública, por alto consumo de drogas ilegais. Temos outros problemas muito maiores na frente: tuberculose, alcoolismo... Por onde a questão das drogas sangra literalmente é no tráfico. Então ou você tem isso de descriminalizar o usuário mas manter a criminalização do traficante, que virou uma categoria fantasmática, o traficante é o demônio, ele não tem casa, não tem mãe; ou então você tem o projetinho da embaixada americana, que é o “justiça terapêutica”, que diz: o usuário é uma vítima. E aí reproduz todo o positivismo do século XIX, e faz uma justiça que não apenas julga, ela também cura. Então obriga o usuário a ir perante o juiz, fazer teste de drogas, tem que se vestir bem, tem que ter notas boas. Um monstrengo positivista que voltou através dessa coisa. A descriminalização do usuário poderia ser o começo de uma legislação geral, mas como eles estão legislando para o Posto Nove, fica uma coisa perversa, porque quem já está descriminalizado vai ser descriminalizado e onde está sangrando, que é na periferia, aumenta-se a hemorragia. (Baptista apud Moretzshon, 2003)

Se por parte dos estratos médios, existe toda uma execração da venda e do uso de drogas ilícitas, nas outras duas extremidades da pirâmide social a tolerância é de um modo geral, e guardadas as especificidades, bem maior, por diferentes razões. No que cabe às classes menos favorecidas, esta relativização está ligada tanto às necessidades econômicas quanto a um ethos, não do “mundo da droga”, mas de um determinado “mundo das drogas” que confere um certo status àqueles que dele participam. Para as elites, por sua vez, esta tolerância para com o “mundo da droga” pode ser explicada, em parte, por trechos de um artigo do jornalista Samuel Blixten, especialista em delinqüência econômica:

Os capitais do narcotráfico estão presentes nos processos de privatização das empresas públicas da América Latina e solucionam um verdadeiro problema para as atuais administrações: a obtenção de um fluxo permanente de divisas para cumprir os compromissos assumidos com os refinanciamentos da dívida externa. Tais necessidades de receita neoliberal atualmente exercida como concepção homogênea em todo o continente, multiplicaram as ações de lavagem, toleradas quase sem dissimulação. Esta realidade revela um duplo discurso e põe em questão os fundamentos da cruzada contra o narcotráfico. Põe em destaque até onde podem se compatibilizar com a lógica de mercado dominante, uma vez que a produção e a comercialização de drogas é um negócio dinâmico, com uma rápida capacidade de acumulação de recursos (Blixten, 2003).

O tráfico é atividade que se constitui de contatos, de infiltrações e de ações articuladas entre distintos atores sociais, desde aqueles que trabalham no controle da entrada e saída de mercadorias, até os que fazem extorsão para permitir esta ou aquela atividade ilícita.

As imbricações entre o Estado e o narcotráfico, através das relações entre seus agentes, produzem dinâmicas de ilegalidade, de violência, de extorsão. No interior das instituições de Estado, especialmente daquelas ligadas ao controle e repressão, estas dinâmicas desdobram-se em disputas pelos privilégios gerados por estas relações, que só ocorrem deste modo em face de uma legislação proibitiva. Assim, a política proibicionista não apenas não consegue impedir que se vendam drogas, como ainda constitui todo um conjunto de práticas ilegalmente violentas.

Não há como combater o consumo de drogas. Não é desejável, em face de todo um conjunto de argumentos que põe às claras o quanto as políticas proibicionistas são contrárias aos mais fundamentais direitos humanos; e não é possível, em face da complexidade das relações sociais, culturais, econômicas, religiosas e afetivas que envolvem a venda e o consumo de substâncias psicoativas.

Grande parte dos discursos proibicionistas baseia-se em argumentos que dizem da necessidade de se proteger os jovens do flagelo das drogas. Tais dinâmicas não só não são eficientes no controle da venda e do uso de drogas, como se contradizem ao gerar uma série de “efeitos colaterais”. No âmbito da saúde, por exemplo, vê-se que além dos problemas eventualmente gerados pelo próprio uso indevido e abusivo de drogas, há ainda aqueles que decorrem da proibição, como a dificuldade na construção de vínculos de confiança entre os trabalhadores de saúde e os usuários de drogas, além de todo um conjunto de vulnerabilidades decorrentes da exclusão social, ampliada pela criminalização de uma prática social. Deste modo, doenças como tuberculose, hepatites e Aids aumentam entre estas pessoas, que tem sua aproximação com os serviços públicos de saúde dificultada pelo preconceito e pela estigmatização.

No âmbito da segurança, podemos pensar na repressão ao uso de drogas como um grande desperdício de dinheiro público. A quantidade de recursos, de pessoal especializado e de tempo empregados na manutenção de uma política repressiva é absolutamente incompatível com a irrelevância do ato de se utilizar drogas, em termos do risco que isto produz à sociedade[4]. O que se quer dizer é que a proibição, que surge para coibir a violência, na verdade a produz. Além disto, esta política proibicionista - que teve por justificativa a defesa da vida dos jovens - acaba produzindo a morte de muitos, muitos deles. Hoje, no Brasil, morre-se muito mais em função da guerra contra as drogas, do que em decorrência do uso destas substâncias. Principalmente as populações mais vulneráveis: jovens homens, negros e pobres das periferias das grandes capitais.

Contribuições objetivas para uma nova política de drogas

  1. Incentivar e garantir a participação dos usuários de drogas junto aos órgãos municipais, estaduais e federais na elaboração e fiscalização das políticas públicas na área de saúde, no que se refere à prevenção, tratamento, discursos e abordagens sobre drogas. O objetivo dessa participação é a construção de políticas de drogas que respeitem as escolhas e a cidadania dos usuários, em consonância com a Lei do SUS.
  2. Substituir, em todos os organismos de Estado, a expressão “anti-drogas” por “políticas sobre drogas”. A Secretaria Nacional Anti-drogas, por exemplo, passaria a se chamar Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, conforme já preconizado no Encontro Nacional sobre Drogas, em 2004. Este órgão nacional, hoje vinculado ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, deverá vincular-se ao Ministério da Saúde, atuando como articulador das políticas de drogas e garantindo unidade e coerência entre as mesmas.
  3. Garantir recursos para a realização de pesquisas sobre drogas, não apenas nas perspectivas biomédicas, mas também no âmbito das ciências humanas e sociais. Tais pesquisas devem embasar a produção das políticas públicas sobre drogas.
  4. Capacitar os profissionais de saúde, agregando às ciências da saúde os conhecimentos das ciências humanas, a fim de melhor compreender os significados e contextos do uso e do abuso de drogas, diferenciando um do outro.
  5. Uma política de promoção de saúde e cidadania deve estar articulada aos princípios do SUS. Nesse sentido, a saúde deve ser entendida como um direito e não como um dever. Sendo assim, deve-se banir toda e qualquer forma de tratamento compulsório e obrigatório, incluindo aí a justiça terapêutica.
  6. Incentivar e garantir, junto às escolas e instituições de atenção à criança e ao adolescente, a elaboração de programas de informação e prevenção ao abuso de drogas. Estes programas devem ser pautados por abordagens isentas de preconceitos, enfatizando um caráter informativo e não-repressivo, tendo em vista a ineficiência dos discursos repressivos, comprovada pelo aumento nos índices de abuso de drogas entre os jovens.
  7. A responsabilidade pela construção de uma política nacional de educação sobre drogas, em ambiente escolar, deve ser do Ministério da Educação, em articulação com outros ministérios (Saúde, Cultura, Esportes, Desenvolvimento Social, e outros).
  8. Incentivar e garantir o desenvolvimento de cursos ou oficinas em escolas, associações e instituições públicas, com o intuito de levar a sociedade a uma compreensão mais ampla acerca do uso de psicoativos, em seus aspectos históricos culturais, religiosos e políticos.
  9. Rever a legislação sobre bebidas alcoólicas e inserir a cerveja (hoje não considerada bebida alcoólica), nessa relação, suprimindo toda a propaganda dessas drogas.
  10. Inserir nos rótulos das bebidas alcoólicas, principalmente da cerveja, uma tarja de advertência alertando sobre os riscos do consumo excessivo e/ou indevido de álcool.
  11. Considerar a veiculação de campanhas educativas e de contra-propaganda a respeito do álcool como droga e do seu abuso e uso indevido como problema de saúde pública.
  12. Aproximar a legislação a respeito das drogas lícitas e ilícitas, levando em consideração que, em relação às lícitas, nota-se excesso de permissividade, propaganda e facilidade de acesso (venda de bebidas alcoólicas em postos de combustíveis e auto-estradas). Quanto às ilícitas, nota-se uma repressão ineficiente que, além de não reduzir oferta nem demanda, ainda contribui para a exclusão social dos usuários, desinformação da sociedade sobre o assunto, fomentação do mercado ilegal, incremento da criminalidade, corrupção generalizada, aumento descontrolado da população carcerária, ausência de regulamentação desse comércio e do controle da qualidade dessas substâncias. Esse quadro, produto da legislação vigente, aumenta os danos causados à saúde dos usuários e os danos sociais decorrentes da violência que é gerada pelo caráter ilegal da produção, distribuição e consumo dessas drogas (violência esta que afeta todas as camadas da sociedade, independente de se relacionarem ou não com o uso e o comércio de drogas).
  13. Reconhecer o uso de drogas como um fenômeno que pode, ou não, causar problemas ao indivíduo e/ou à sociedade. Neste sentido, cabe ao Estado prover a sociedade com estratégias desenvolvidas a partir de uma política nacional de educação sobre drogas, para usuários e não-usuários, e com assistência e tratamento aos usuários abusivos e dependentes.
  14. Rever a legislação a respeito do usuário de drogas, levando em conta que tal legislação tem contribuído para um aumento dos danos causados ao indivíduo e à sociedade.
  15. Estimular estratégias de profissionalização, de apoio à família e de combate à exclusão social dos usuários de drogas e dos jovens empregados no tráfico, uma vez que esta atividade se apresenta como uma alternativa sedutora diante do quadro de exclusão social, miséria e desrespeito aos direitos humanos mais fundamentais, quadro este encontrado normalmente nas comunidades onde o tráfico de drogas se desenvolve.
  16. Desenvolver projetos que valorizem a cultura da periferia, onde os jovens são mais vulneráveis à criminalidade e ao tráfico.
  17. Instituir programas públicos que beneficiem os jovens infratores em sua recuperação, priorizando a adoção de penas alternativas. Em relação a esses jovens, para um maior proveito da sociedade, a intervenção do Estado deveria se dar no sentido de provê-los de alternativas, ao invés de encarcerá-los nas “escolas do crime” que se tornaram as penitenciárias brasileiras. Considerar a possibilidade de anistia de crimes relacionados ao tráfico de drogas (analisando caso a caso), como estratégia de combate à exclusão social.

Princípio Ativo – por uma nova política de drogas

principioativo.rs@gmail.com



[1] - Alguns médicos recomendam o uso de maconha a pessoas doentes de Aids por sua capacidade de despertar o apetite, ou ainda por uma capacidade de fazer com que os enjôos decorrentes da ingestão do “coquetel” diminuam.

[2] - O congresso nacional discute a reformulação da Lei 6368, de 1976. O PL 8123, de autoria do Deputado Paulo Pimenta, vem sendo erroneamente anunciado como u m projeto de descriminalização do uso de drogas no Brasil. Nada mais equivocado: trata-se, quando muito, de um projeto de despenalização, pois prevê o fim da pena de prisão ao usuário de drogas, mantendo, porém, outros níveis de penalização.

[3] - Para uma leitura mais crítica da dita “Justiça Terapêutica”, ver a entrevista do ex-secretário de segurança do Rio de Janeiro, Nilo Baptista, para a revista Caros Amigos de agosto de 2003 (MORETZSOHN, Sylvia, et alli. “Todo crime é político”: Entrevista com Nilo Baptista. Caros Amigos. São Paulo: Ano VII, n.77, Ago. 2003. p. 28 – 33).

[4] - Considera-se aqui o uso de drogas descontextualizado de seus vínculos com o comércio ilegal, pois entende-se que estes vínculos só existem enquanto produto das dinâmicas proibicionistas.

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