Monday, May 08, 2006

As atuais políticas de drogas estão funcionando?

As drogas hoje ilícitas foram proibidas no começo do século XX para preservar a saúde das pessoas. Esperava-se, com a aplicação de penas a usuários e vendedores dessas substâncias, redução de consumo e de danos às pessoas e à sociedade. Hoje o que se vê é um grande crescimento do uso dessas drogas. Com o aumento da demanda e a proibição da venda, formou-se um comércio ilícito que, sem a regulamentação do Estado, se regulou por conta própria, usando de uma violência crescente. O resultado é conhecido: milhares de mortes desnecessárias, a maioria devido à ação do tráfico e à repressão e não ao uso das drogas.
O Estado tem o dever de zelar pela vida dos cidadãos. Se as drogas são perigosas e capazes de arruinar vidas (e são), as conseqüências da proibição as têm arruinado muito mais e produzido maiores danos à sociedade. É preciso reconhecer que a proibição do uso de drogas não reduziu o consumo e gerou novos problemas. Além da violência, a criminalização dessas condutas prejudica o atendimento aos usuários que se tornaram dependentes, isso sem falar no desperdício de dinheiro público na manutenção da repressão, enquanto faltam recursos para tratamento de qualidade aos dependentes (lembremos que a repressão é muito mais cara do que a prevenção).
Superemos os preconceitos e assumamos a discussão de uma nova política de drogas que reduza o consumo através de educação e prevenção. Não se trata de deixar livres a venda e o uso dessas substâncias, mas de regulamentá-las para saber quem vende, quem compra, onde, em que quantidade e para onde vai o dinheiro movimentado nesse comércio. Só com esse controle será possível trazer o problema das drogas à sua real dimensão, a da saúde pública, criando estratégias eficazes para, com respeito à dignidade das pessoas, desestimular o uso de drogas e reduzir conflitos. Lembremos que o consumo do tabaco está sendo reduzido por meio de sanções, mas não da proibição total ao uso e comércio.
É viável um modelo menos nocivo que o atual. Podemos reduzir a violência, controlar o consumo de drogas, arrecadar fundos para educação e prevenção e diminuir a corrupção que o tráfico engendra no poder público. Uma nova política de drogas, aliada a projetos de distribuição de renda e geração de oportunidades é capaz, se não de construir a sociedade dos nossos sonhos, ao menos de reduzir os danos causados por décadas de políticas equivocadas.


Tiago Ribeiro é acadêmico de filosofia e participante do coletivo Princípio Ativo – por uma nova política de drogas.

Saturday, May 06, 2006

Desvio e Divergência nos Usos de Drogas e seus Sentidos


Os fenômenos de usos de substâncias psicoativas remontam à Antigüidade da experiência humana e, de diversas formas, em diversos contextos históricos e sócio-culturais, receberam, por parte das pessoas e dos grupos sociais, diferentes sentidos e interpretações. Deste modo, cada sociedade ou, mais do que isso, cada pessoa dela participante, em cada momento histórico, atribui sentidos diversos e específicos a essas práticas de alteração da consciência. Tais práticas, portanto, desprovidas de um sentido absoluto (o sentido delas em si mesmas), se constituem, ou melhor, são constituídas, por meio da atribuição de sentidos que cada pessoa ou grupo social lhes confere, atribuição esta que dependerá, invariavelmente, de sobredeterminações diversas ligadas ao momento histórico, ao sistema simbólico e valorativo, a aspectos psicológicos e psicossociais dentre uma vasta gama de fatores intervenientes que, mais ou menos, interferem na experiência e na recepção dessa experiência por parte de cada pessoa e cada grupo social.
Deste modo, ocupa-se o presente texto com a apresentação de algumas considerações acerca dos usos de drogas em nossa sociedade ocidental contemporânea, em seus contextos urbanos, e com as formas pelas quais tais práticas são significadas enquanto comportamentos desviantes que se dão em situações de estigmatização. Para esta reflexão, faço uso de noções apresentadas por Gilberto Velho e Filipina Chinelli em seus textos “Estigma e Comportamento Desviante em Copacabana” e “Acusação e Desvio em uma Minoria”, presentes no livro “Desvio e Divergência: uma Crítica da Patologia Social”, bem como por Maria Dulce Gaspar (“O Jogo de Atributos: a construção da identidade social da garota de programa”), Erving Goffman (“Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”) e Howard Becker (“Los Extraños: sociología de la desviación”).

Parto aqui do pressuposto de entendimento do usuário de drogas como uma minoria dentro do nosso universo social. Segundo Wirth, citado por Filipina Chinelli, uma minoria é “um grupo de pessoas que, em virtude das suas características físicas ou culturais, são afastadas de outras na sociedade em que vivem por um tratamento diferencial e desigual e que, portanto, se vêem como objeto de discriminação coletiva. A existência de uma minoria numa sociedade implica a existência de um grupo dominante correspondente que desfruta status social mais alto e maiores privilégios. O status de minoria carrega consigo a exclusão de participação completa na vida da maioria”. Assim, o uso de drogas, prática definidora dessa categoria “usuário de drogas”, enquanto prática minoritária no interior da nossa sociedade, no atual momento histórico, e enquanto prática sobre a qual se encontra atribuído um estigma, pode ser considerada, seguindo-se a linha de interpretação expressa por Gilberto Velho, como uma prática ou um comportamento desviante. Falar, contudo, em “desvio”, é, necessariamente, falar em “norma” e, isto posto, faz-se necessário, mesmo que de forma breve, mencionar que agrupamentos humanos estabelecem como regramento para sua melhor convivência determinadas normas de conduta que são, de fato, a expressão prática de conceitos e valores morais.
Bem, em nossa sociedade e em nosso momento histórico, o uso de drogas é algo classificado normativamente como “errado”, “nocivo”, “perigoso” e mesmo “criminoso”. Tais classificações originam (ou se originam de, não cabe a este trabalho empreender tal complexa investigação) sistemas morais e sistemas legais que objetivam o controle e o impedimento dessa prática. Nesse sentido, nos é lícito afirmar, correndo os devidos riscos e seguindo a linha de Velho e Chinelli, que o uso de drogas constitui um comportamento em desacordo com o conjunto de valores que expressam a identidade e a unidade (ideais) do grupo maior, a sociedade. Usar drogas (notadamente as drogas ilícitas), portanto, no contexto aqui referido, constitui um desvio social passível de diversas formas de sanções e punições (desde a dificuldade de acesso à substância desejada, até as sanções morais, o preconceito, o estigma e, por fim, as sanções penais).
Exatamente como refere Velho, Goffman e outros autores ocupados com o estudo dos comportamentos desviantes e dos processos de estigmatização que a eles se relacionam, o usuário de drogas é transformado, não exatamente por sua prática de uso de drogas, mas sim pelas sanções e restrições impostas ao comportamento condenado pelo sistema de valores, em uma pessoa acusada de atos criminosos, de incapacidade de gerenciamento da própria vida, em ameaça potencial a todos que vivem em conformidade com o modelo “apropriado” de viver, etc. Aplicando, pois, a este objeto, o raciocínio empregado por Filipina Chinelli, a condenação a certas práticas é a manutenção de outras, aquelas que constituem e caracterizam o grupo dominante. Chinelli, tomando a perspectiva interacionista de Becker afirma então, com relação ao homossexualismo, aquilo que Becker afirmou com relação a diversos outros comportamentos, dentre os quais o uso de drogas: “o desvio é uma criação da própria sociedade”, pois é em relação a ele que o grupo majoritário se reafirma enquanto produtor das regras, dos sentidos e das dinâmicas da vida social.

Os comportamentos desviantes se caracterizam por produzir marcas negativas na identidade social daquele que os apresenta, de modo a influenciar decisivamente as concepções e as ações dos demais em relação a estes, e vice-versa. Assim, o estigmatizado, o desviante é o suspeito principal ao qual será atribuída a culpa por esta ou aquela situação desfavorável, por este ou aquele delito. Como refere Gilberto Velho, mesmo que, no mais das vezes, a apuração dos fatos não confirme a culpabilidade do desviante, este seguirá como o eterno vigiado, o suspeito a priori, o principal acusado. E, logicamente, nos casos minoritários em que de fato houve alguma participação do desviante, essa participação será extremamente exagerada, amplificada e servirá como comprovação de tudo aquilo que “todos já sabiam” acerca dele. Ou seja, a presença de um desviante constitui, nos termos de Velho, “um ambiente potencial favorável ao surgimento periódico de ‘cruzadas’ moralistas”.
É importante ter em mente, aqui, o pensamento de Howard Becker sobre o desvio. O comportamento desviante não constitui uma substância, quer dizer, não tem um conteúdo intrínseco. Neste sentido, usar drogas ilícitas, ter práticas homossexuais ou ser prostituta não constitui um desvio a não ser que esteja em uma determinada relação social com outras práticas que, dominantes e sistematizadas, operam como um sistema valorativo e prescritivo das ações e das concepções de todos os moradores de um dado agrupamento social. O que Becker parece querer enfatizar é a forma de produção de normas e desvios, enquanto os conteúdos propriamente ditos, com os quais tais formas serão “preenchidas”, se encontram submetidos a sobredeterminações e contingências históricas, sociais, culturais, etc. Deste modo, os mesmos comportamentos, em contextos e/ou épocas diversas, podem ocupar posições também diversas nos sistemas de valores (ou esquemas simbólicos) que normatizam e “preenchem” com conteúdo e ditames morais as relações que se estabelecem entre as diferentes pessoas e grupos no interior de uma coletividade.
Como Gilberto Velho ilustra, “existe uma fraca relação entre os incidentes, propriamente ditos, e as pessoas identificadas como desviantes”. Quer dizer, quando se trata do estudo acerca de temas como o desvio, a divergência e o estigma, se trata de, menos do que atentar para o conteúdo das práticas dos atores sociais, atentar para a forma como estas são identificadas pelos demais. Assim, quando pessoas acusam outras de serem “drogadas” ou “prostitutas”, elas estão produzindo informações acerca de si mesmas, ou, pelo menos, acerca das regras que organizam o grupo social que representam. De certa forma a acusação de “desviante” se dá no sentido de encontrar “bodes expiatórios” para quaisquer problemas ou dificuldades que se encontrem em meio à sociedade. Quer dizer, quaisquer características que afastem a pessoa do modelo “normal” podem servir, em uma situação de crise em que a estrutura valorativa e identitária do grupo se encontre, por alguma razão, abalada ou posta em xeque, como motivos suficientes para acusações. O desviante, deste modo, ao ser identificado à causa dos problemas, garante a manutenção da solidez do sistema de vida dominante, impedindo que este tenha de se confrontar com suas contradições, suas falhas e, principalmente, impedindo que as pessoas que o sustentam (e por ele são sustentadas) tenham de enfrentar o risco representado por todo e qualquer processo de mudança. Desta forma, como afirma Gilberto Velho, “é necessário explicar os possíveis problemas [...] como sendo produto e originados em um locus específico, com limites claros”. Tal locus pode ser, como no caso do texto de Velho, prédios grandes com muitos apartamentos ou, como no trabalho de Maria Dulce Gaspar, a “promiscuidade” das garotas de programa ou, ainda, como aqui se pretende, o uso de drogas de certos subgrupos no interior de sociedades complexas. Em todos esses casos, contudo, trata-se, por parte dos grupos majoritários, de “cercar” de algum modo esses subgrupos e os locais onde eles desenvolvem suas práticas e seus modos de vida desviantes. Trata-se, ainda, de classificá-los (o que será feito de forma coerente com todo o sistema valorativo dominante) como indesejáveis, assegurando-se de que nenhum tipo de “confusão” possa se dar entre norma e desvio, entre “normais” e “desviantes”. Ou seja, trata-se da determinação, por parte da coletividade, de seus limites morais, das fronteiras entre o “aceitável” e o desviante, o que se dará por meio da definição de papéis e de posições sociais. Quer dizer, conceitos e seus significados são determinados (disputados) de modo a constituir um sistema de relações sociais mais ou menos normatizadas de acordo com as posições e os papéis que cada pessoa e cada grupo ocupa. Cada vez que uma ruptura se processa nesse sistema mais ou menos equilibrado encontramo-nos diante de uma situação de desvio (como, por exemplo, o homem que não age conforme o conceito histórica e socialmente dominante de “homem” ou o homem que, com suas práticas, contradiz o conceito histórica e socialmente dominante de “saúde” ou de “vida saudável”).
Mas é interessante notar que tais “conceitos dominantes” se encontram permanentemente em disputa e que nunca chegam a se cristalizar completamente no seio de um agrupamento social ou de uma comunidade de valores. Operam nesse processo diversos fatores que se conectam, uns em referência aos outros, na constituição de uma “rede” ou de uma “teia” de significados e referenciais comuns (ou quase comuns). Tais sistemas de sentido são construídos ao longo do processo histórico de uma sociedade, mais ou menos em contato com outras sociedades, sempre a partir de valores básicos tomados por “verdades absolutas” ou “verdades primeiras”, as quais constituirão o fundamento de outros valores, coerentemente relacionados aos primeiros (Mary Douglas, em “Como as instituições pensam” apresenta um interessante raciocínio nessa linha). Exemplos desses processos são apresentados, no que se refere ao uso de drogas, pelo historiador Henrique Carneiro em seu livro “Filtros, Mezinhas e Triacas – as drogas no mundo moderno”, quando tal prática é proscrita na Idade Média por contradizer valores fundamentais do cristianismo (o uso de drogas era identificado aos prazeres sensuais, proibidos por um sistema de valores que via no corpo a fonte do mal) e na Idade Moderna por ser associada ao delírio e à irracionalidade (em oposição à Razão, fonte de todo saber e de todo valor).

Penso ter enunciado e analisado algumas das principais características das noções de “comportamento desviante”, tais como expressas pelos autores citados. Penso, também, ter proposto com alguma propriedade uma leitura dos fenômenos de uso de drogas, em nossa sociedade, como exemplos de comportamento desviante, a partir da explicitação de semelhanças entre esta e outras práticas, citadas e estudadas por esses mesmos autores. Tais práticas denominadas “desviantes” não carregam, contudo, em si mesmas, uma natureza desviante. São elas o produto de relações históricas e sócio-culturais que conferem sentido e atribuem valor a conteúdos (a ações) que dependem inteiramente desse processo para serem compreendidos e julgados pelas pessoas e pelos grupos. O entendimento dos comportamentos desviantes enquanto conceitos relacionais ajuda a compreender os modos pelos quais as sociedades se constituem e se organizam pelo estabelecimento de papéis e posições sociais, sistemas de sentido e valoração e, também, os modos pelos quais as pessoas, imbuídas de tais sistemas, operam suas “verdades”, suas “certezas”, suas “simpatias” e seus “afetos”, atuando e julgando em conformidade com tais sistemas, sejam eles majoritários ou minoritários. A identificação, portanto, daqueles comportamentos que serão classificados como “desviantes”, dentre os inúmeros comportamentos humanos possíveis, pode nos prover de uma vasta gama de informações sobre a sociedade e sobre as formas como ela se pensa, se produz, se mantém e se transforma a partir da atribuição de sentidos e valores a práticas que, em si mesmas, nada valem ou significam.

Saturday, April 01, 2006

Tuesday, March 28, 2006

panfleto do fórum social binacional brasil/uruguai


É legítima uma lei que milhões de pessoas não estão dispostas a obedecer?

A cada dia que passa mais e mais pessoas, em todo o mundo, dão-se conta de que a guerra contra as drogas é uma guerra contra os pobres. Por trás de um discurso que fala em defender os jovens expostos ao “flagelo das drogas”, o governo estadunidense promove ações imperialistas e expansionistas na América Latina e na Ásia, do mesmo modo que o faz no Oriente Médio sob o disfarce da “guerra ao terrorismo”. Paralelo a isto, no Brasil, vê-se a repressão ao narcotráfico encobrindo o ataque aos excluídos. Em diversos estados é cada vez mais comum o desrespeito aos direitos das populações excluídas e tornadas coadjuvantes em suas próprias existências. Assim, sob a justificativa de proteger os jovens das drogas, matam-se jovens (em sua maioria, pretos e pobres). Sob a justificativa da “guerra às drogas” vemos a polícia invadir comunidades com metralhadoras abertas sobre uma população formada por cidadãos que vêem seus direitos escorrerem pelo ralo.

O número de pessoas mortas na “war on drugs” é muito superior àquele das pessoas que morrem em função do uso das drogas proibidas e tão combatidas. Além disso, essa política de “guerra às drogas” não tem sido capaz de reduzir a oferta nem a demanda por psicoativos (as drogas seguem sendo produzidas em larga escala e os índices de consumo aumentam, ano após ano, em todo o mundo ocidental). Ao preconizar as bases de uma política global, há décadas atrás, a ONU acreditava ser possível erradicar as drogas do planeta. Tal projeto demonstrou-se desastroso. Não há mais como defendê-lo, a não ser através de discursos que demonizam usuários e vendedores de drogas. Discursos que, não raro, encobrem outros interesses, como o controle da região amazônica e de comunidades situadas nas periferias das grandes cidades. Atendem também aos interesses das grandes corporações farmacêuticas que lucram alto com a venda de algumas drogas, enquanto o potencial terapêutico de outras (mais baratas e acessíveis, como a cannabis), é negligenciado.

O Movimento Princípio Ativo luta por uma nova política de drogas. Nesta luta não estamos sós. No Brasil, juntamo-nos aos companheiros da Associação de Usuários de Drogas de Pernambuco, da Rede Verde e do NEIP, em São Paulo, e da Psicotrópicus e do Movimento Nacional pela Legalização das Drogas, no Rio de Janeiro. Além disto, também nos juntamos aos esforços de organizações que atuam em projetos de redução dos danos decorrentes do uso de drogas, através de ações de promoção de saúde pautadas em discursos não moralistas. Ao contrário, o Princípio Ativo fundamenta sua atuação nos princípios dos Direitos Humanos e defende, a partir de uma perspectiva isenta de preconceitos acerca de usos e usuários de psicoativos, a construção de modelos de regulamentação da produção, da distribuição e do uso dessas substâncias, não se pautando pela mera proibição e repressão.

Estamos presentes no 1º Acampamento Binacional do Fórum Social Mundial para dizer que outra política de drogas é possível, e que as ações de enfrentamento desta política não são privilégio de nenhum coletivo. Neste sentido, o grupo Princípio Ativo não se organiza de forma centralizada nem hierárquica. Opera de modo a impulsionar núcleos que multipliquem ações e reflexões, fomentando o debate e a construção de alternativas ao proibicionismo como forma de pensar e agir em relação aos usos de psicoativos. Assim, convidamos a todos para que construam seus coletivos e organizem ações em suas cidades e regiões. Nos dispomos a colaborar com a troca de experiências e, para esta troca, trazemos aquilo que já realizamos em Porto Alegre. Não é muito, mas é o que temos de melhor.

Contatos: principioativo.rs@gmail.com

Wednesday, February 22, 2006

Contribuição a um debate sobre política de drogas no âmbito do Plano Nacional de Juventude

O ser humano sempre utilizou substâncias alteradoras da consciência. Os registros mais antigos do uso de drogas datam de cerca de cinco mil anos, na China, Egito e Suméria. Nas sociedades primitivas ao redor do mundo, uma infinidade de substâncias alucinógenas foram, e ainda são, empregadas em cerimônias mais ou menos secretas. Na Índia, os hindus utilizam a maconha pelo menos uma vez por ano, e os Rastafaris jamaicanos consideram esta mesma substância como sendo um poderoso elo de ligação entre o homem e Deus, chamado por eles de Jah. Contemporaneamente temos os grupos que utilizam o Ayahuasca, também conhecido como Santo Daime. Enfim, os exemplos do uso religioso e cultural de substâncias psicoativas são inúmeros.

Apesar de serem conhecidas e utilizadas ao longo de toda a história da humanidade, provavelmente nunca se falou tanto em problemas relacionados às drogas. A própria terminologia gera discussões intermináveis, e definir um indivíduo como “usuário”, “viciado” ou “dependente” fala muito mais do sujeito que define que do objeto definido. A psicologia, por exemplo, vai entender esta questão a partir do ponto de vista das diferentes escolas. Já no campo da medicina, onde o tema do uso indevido de drogas somente começou a ser desenvolvido com mais seriedade a partir do século XVIII, também não há consensos, e encontramos desde médicos que recomendam o uso de maconha como auxiliar no tratamento de problemas decorrentes da Aids[1], até outros que desconsideram a possibilidade de uso recreativo de substâncias ilícitas, diagnosticando todos os indivíduos que se utilizam destas substâncias como “dependentes químicos” ou “toxicômanos”. No campo do Direito, há também uma multiplicidade de visões, que vão do modelo proibitivo e repressivo, que recomenda penas restritivas de liberdade ao usuário de drogas, até o outro extremo, onde encontramos os que defendem uma legalização ampla, geral e irrestrita. No caminho do meio, temos a vertente da descriminalização[2] passando, ainda, pela concepção de justiça terapêutica[3].

Em meio a uma repressão ineficiente, justificada legalmente, porém cada vez mais questionada politicamente, o tráfico move-se com extrema agilidade. Utilizando métodos modernos, os traficantes de hoje em muito pouco se assemelham aos românticos “Robin Hoods” do passado. Nos anos sessenta e setenta, os traficantes ocupavam um lugar de destaque nas comunidades onde se instalavam, em função da assimilação de algumas tarefas da alçada do Estado, principalmente segurança e assistência. Atualmente, este papel estatal continua sendo exercido; contudo, nota-se uma forte transformação no modelo deste “Estado”: ao passo que antes a atuação destas lideranças se assemelhava àquelas dos governos de orientação populista, hoje vemos que esta semelhança se manifesta através do medo; o exercício do poder por parte dos traficantes, hoje, lembra em muito os métodos de repressão e de terror utilizados por Estados fascistas e ditatoriais.

No entanto, ler a violência urbana apenas como conseqüência do tráfico de drogas é muito simplório, e não condiz com a realidade. Uma leitura um pouco mais sofisticada precisa levar em conta aspectos históricos, por exemplo. Na adaptação cinematográfica de Ruy Guerra para “A Ópera do Malandro”, de Chico Buarque, há uma cena muito interessante: enquanto a personagem Margot prepara-se para o show da noite, duas camareiras conversam enquanto limpam o teatro. Uma diz à outra que o preço da cocaína havia subido: “Um boneco de cinco gramas de cocaína pelo preço de duas cervejas! Assim eu não cheiro mais, nem pra remédio!”. A obra de Chico Buarque, ficcional, desenrola-se em um cenário absolutamente real: o Rio de Janeiro durante a segunda grande guerra. De fato, naqueles dias, podia-se comprar cocaína nas farmácias, a preços módicos. A proibição do uso de algumas substâncias é, pois, uma realidade recente na história brasileira.

Estudos antropológicos atestam a diversidade que marca as práticas sociais relacionadas ao uso de drogas. Segundo Gilberto Velho, uma das principais características da pessoa usuária de drogas é justamente a ausência de características unificadoras que possibilitem a construção de um “perfil” do usuário de drogas. Para demonstrar isto, ele irá acompanhar, ao longo de três anos, um grupo de usuários de drogas da classe média alta carioca. Já Anthony Richard Henman estuda os problemas vividos por uma tribo do Maranhão, onde o uso de maconha é visto com naturalidade. Por fim, como exemplo final desta diversidade, tomemos o estudo de Fernanda Delvalhas Piccolo, sobre as trajetórias sociais de usuários de drogas em um bairro periférico da cidade de Porto Alegre. Comparados estes três estudos, encontramos apenas um elemento unificador: o uso de substâncias psicoativas. Pode-se perceber, portanto, que não existe um modelo fechado através do qual podemos descrever os grupos de usuários de drogas. Não existe “uso” de drogas, e sim “usos”.

Os atravessamentos entre os mundos da droga e o mundo da violência são cada vez mais recorrentes. Se nos anos sessenta e setenta o uso de drogas era relacionado ao movimento de contracultura, na atualidade ele é relacionado, senso comum, à criminalidade. É cada vez mais forte o discurso de que o usuário de drogas sustenta o traficante. Este, por sua vez, é demonizado e visto como o principal responsável pela violência nas cidades brasileiras. E, na tentativa de fazer a imagem do traficante inseparável da imagem do mal, meros peões do narcotráfico causam mais horror à sociedade (talvez devido à sua visibilidade e proximidade?) do que os principais destinatários dos lucros advindos deste negócio milionário. Para a maioria das pessoas, a simples tentativa de se estabelecer relações entre a violência e a ilegalidade do comércio de drogas, em uma comparação rasa com os problemas advindos da Lei Seca nos Estados Unidos, é motivo de escândalo. O moralismo ainda dá a tônica, em um debate que, salvo raras e louváveis exceções, descamba para o lugar comum e para a superficialidade. Em face disto, um Projeto de Lei como o de número 7.134/2002, que versa sobre o fim das penas restritivas de liberdade aos usuários de drogas, é visto como um grande avanço. Segundo a socióloga Vera Malaguti Baptista:

O pessoal que propõe a descriminalização do usuário vai na vertente Posto Nove, falando para um público que já é descriminalizado, que é o usuário de classe média e de zona sul. E que eu não quero criminalizar, veja bem. Mas aí a contrapartida para esse discurso consentido é pena maior para o traficante. Nós não temos um problema de saúde pública, por alto consumo de drogas ilegais. Temos outros problemas muito maiores na frente: tuberculose, alcoolismo... Por onde a questão das drogas sangra literalmente é no tráfico. Então ou você tem isso de descriminalizar o usuário mas manter a criminalização do traficante, que virou uma categoria fantasmática, o traficante é o demônio, ele não tem casa, não tem mãe; ou então você tem o projetinho da embaixada americana, que é o “justiça terapêutica”, que diz: o usuário é uma vítima. E aí reproduz todo o positivismo do século XIX, e faz uma justiça que não apenas julga, ela também cura. Então obriga o usuário a ir perante o juiz, fazer teste de drogas, tem que se vestir bem, tem que ter notas boas. Um monstrengo positivista que voltou através dessa coisa. A descriminalização do usuário poderia ser o começo de uma legislação geral, mas como eles estão legislando para o Posto Nove, fica uma coisa perversa, porque quem já está descriminalizado vai ser descriminalizado e onde está sangrando, que é na periferia, aumenta-se a hemorragia. (Baptista apud Moretzshon, 2003)

Se por parte dos estratos médios, existe toda uma execração da venda e do uso de drogas ilícitas, nas outras duas extremidades da pirâmide social a tolerância é de um modo geral, e guardadas as especificidades, bem maior, por diferentes razões. No que cabe às classes menos favorecidas, esta relativização está ligada tanto às necessidades econômicas quanto a um ethos, não do “mundo da droga”, mas de um determinado “mundo das drogas” que confere um certo status àqueles que dele participam. Para as elites, por sua vez, esta tolerância para com o “mundo da droga” pode ser explicada, em parte, por trechos de um artigo do jornalista Samuel Blixten, especialista em delinqüência econômica:

Os capitais do narcotráfico estão presentes nos processos de privatização das empresas públicas da América Latina e solucionam um verdadeiro problema para as atuais administrações: a obtenção de um fluxo permanente de divisas para cumprir os compromissos assumidos com os refinanciamentos da dívida externa. Tais necessidades de receita neoliberal atualmente exercida como concepção homogênea em todo o continente, multiplicaram as ações de lavagem, toleradas quase sem dissimulação. Esta realidade revela um duplo discurso e põe em questão os fundamentos da cruzada contra o narcotráfico. Põe em destaque até onde podem se compatibilizar com a lógica de mercado dominante, uma vez que a produção e a comercialização de drogas é um negócio dinâmico, com uma rápida capacidade de acumulação de recursos (Blixten, 2003).

O tráfico é atividade que se constitui de contatos, de infiltrações e de ações articuladas entre distintos atores sociais, desde aqueles que trabalham no controle da entrada e saída de mercadorias, até os que fazem extorsão para permitir esta ou aquela atividade ilícita.

As imbricações entre o Estado e o narcotráfico, através das relações entre seus agentes, produzem dinâmicas de ilegalidade, de violência, de extorsão. No interior das instituições de Estado, especialmente daquelas ligadas ao controle e repressão, estas dinâmicas desdobram-se em disputas pelos privilégios gerados por estas relações, que só ocorrem deste modo em face de uma legislação proibitiva. Assim, a política proibicionista não apenas não consegue impedir que se vendam drogas, como ainda constitui todo um conjunto de práticas ilegalmente violentas.

Não há como combater o consumo de drogas. Não é desejável, em face de todo um conjunto de argumentos que põe às claras o quanto as políticas proibicionistas são contrárias aos mais fundamentais direitos humanos; e não é possível, em face da complexidade das relações sociais, culturais, econômicas, religiosas e afetivas que envolvem a venda e o consumo de substâncias psicoativas.

Grande parte dos discursos proibicionistas baseia-se em argumentos que dizem da necessidade de se proteger os jovens do flagelo das drogas. Tais dinâmicas não só não são eficientes no controle da venda e do uso de drogas, como se contradizem ao gerar uma série de “efeitos colaterais”. No âmbito da saúde, por exemplo, vê-se que além dos problemas eventualmente gerados pelo próprio uso indevido e abusivo de drogas, há ainda aqueles que decorrem da proibição, como a dificuldade na construção de vínculos de confiança entre os trabalhadores de saúde e os usuários de drogas, além de todo um conjunto de vulnerabilidades decorrentes da exclusão social, ampliada pela criminalização de uma prática social. Deste modo, doenças como tuberculose, hepatites e Aids aumentam entre estas pessoas, que tem sua aproximação com os serviços públicos de saúde dificultada pelo preconceito e pela estigmatização.

No âmbito da segurança, podemos pensar na repressão ao uso de drogas como um grande desperdício de dinheiro público. A quantidade de recursos, de pessoal especializado e de tempo empregados na manutenção de uma política repressiva é absolutamente incompatível com a irrelevância do ato de se utilizar drogas, em termos do risco que isto produz à sociedade[4]. O que se quer dizer é que a proibição, que surge para coibir a violência, na verdade a produz. Além disto, esta política proibicionista - que teve por justificativa a defesa da vida dos jovens - acaba produzindo a morte de muitos, muitos deles. Hoje, no Brasil, morre-se muito mais em função da guerra contra as drogas, do que em decorrência do uso destas substâncias. Principalmente as populações mais vulneráveis: jovens homens, negros e pobres das periferias das grandes capitais.

Contribuições objetivas para uma nova política de drogas

  1. Incentivar e garantir a participação dos usuários de drogas junto aos órgãos municipais, estaduais e federais na elaboração e fiscalização das políticas públicas na área de saúde, no que se refere à prevenção, tratamento, discursos e abordagens sobre drogas. O objetivo dessa participação é a construção de políticas de drogas que respeitem as escolhas e a cidadania dos usuários, em consonância com a Lei do SUS.
  2. Substituir, em todos os organismos de Estado, a expressão “anti-drogas” por “políticas sobre drogas”. A Secretaria Nacional Anti-drogas, por exemplo, passaria a se chamar Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, conforme já preconizado no Encontro Nacional sobre Drogas, em 2004. Este órgão nacional, hoje vinculado ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, deverá vincular-se ao Ministério da Saúde, atuando como articulador das políticas de drogas e garantindo unidade e coerência entre as mesmas.
  3. Garantir recursos para a realização de pesquisas sobre drogas, não apenas nas perspectivas biomédicas, mas também no âmbito das ciências humanas e sociais. Tais pesquisas devem embasar a produção das políticas públicas sobre drogas.
  4. Capacitar os profissionais de saúde, agregando às ciências da saúde os conhecimentos das ciências humanas, a fim de melhor compreender os significados e contextos do uso e do abuso de drogas, diferenciando um do outro.
  5. Uma política de promoção de saúde e cidadania deve estar articulada aos princípios do SUS. Nesse sentido, a saúde deve ser entendida como um direito e não como um dever. Sendo assim, deve-se banir toda e qualquer forma de tratamento compulsório e obrigatório, incluindo aí a justiça terapêutica.
  6. Incentivar e garantir, junto às escolas e instituições de atenção à criança e ao adolescente, a elaboração de programas de informação e prevenção ao abuso de drogas. Estes programas devem ser pautados por abordagens isentas de preconceitos, enfatizando um caráter informativo e não-repressivo, tendo em vista a ineficiência dos discursos repressivos, comprovada pelo aumento nos índices de abuso de drogas entre os jovens.
  7. A responsabilidade pela construção de uma política nacional de educação sobre drogas, em ambiente escolar, deve ser do Ministério da Educação, em articulação com outros ministérios (Saúde, Cultura, Esportes, Desenvolvimento Social, e outros).
  8. Incentivar e garantir o desenvolvimento de cursos ou oficinas em escolas, associações e instituições públicas, com o intuito de levar a sociedade a uma compreensão mais ampla acerca do uso de psicoativos, em seus aspectos históricos culturais, religiosos e políticos.
  9. Rever a legislação sobre bebidas alcoólicas e inserir a cerveja (hoje não considerada bebida alcoólica), nessa relação, suprimindo toda a propaganda dessas drogas.
  10. Inserir nos rótulos das bebidas alcoólicas, principalmente da cerveja, uma tarja de advertência alertando sobre os riscos do consumo excessivo e/ou indevido de álcool.
  11. Considerar a veiculação de campanhas educativas e de contra-propaganda a respeito do álcool como droga e do seu abuso e uso indevido como problema de saúde pública.
  12. Aproximar a legislação a respeito das drogas lícitas e ilícitas, levando em consideração que, em relação às lícitas, nota-se excesso de permissividade, propaganda e facilidade de acesso (venda de bebidas alcoólicas em postos de combustíveis e auto-estradas). Quanto às ilícitas, nota-se uma repressão ineficiente que, além de não reduzir oferta nem demanda, ainda contribui para a exclusão social dos usuários, desinformação da sociedade sobre o assunto, fomentação do mercado ilegal, incremento da criminalidade, corrupção generalizada, aumento descontrolado da população carcerária, ausência de regulamentação desse comércio e do controle da qualidade dessas substâncias. Esse quadro, produto da legislação vigente, aumenta os danos causados à saúde dos usuários e os danos sociais decorrentes da violência que é gerada pelo caráter ilegal da produção, distribuição e consumo dessas drogas (violência esta que afeta todas as camadas da sociedade, independente de se relacionarem ou não com o uso e o comércio de drogas).
  13. Reconhecer o uso de drogas como um fenômeno que pode, ou não, causar problemas ao indivíduo e/ou à sociedade. Neste sentido, cabe ao Estado prover a sociedade com estratégias desenvolvidas a partir de uma política nacional de educação sobre drogas, para usuários e não-usuários, e com assistência e tratamento aos usuários abusivos e dependentes.
  14. Rever a legislação a respeito do usuário de drogas, levando em conta que tal legislação tem contribuído para um aumento dos danos causados ao indivíduo e à sociedade.
  15. Estimular estratégias de profissionalização, de apoio à família e de combate à exclusão social dos usuários de drogas e dos jovens empregados no tráfico, uma vez que esta atividade se apresenta como uma alternativa sedutora diante do quadro de exclusão social, miséria e desrespeito aos direitos humanos mais fundamentais, quadro este encontrado normalmente nas comunidades onde o tráfico de drogas se desenvolve.
  16. Desenvolver projetos que valorizem a cultura da periferia, onde os jovens são mais vulneráveis à criminalidade e ao tráfico.
  17. Instituir programas públicos que beneficiem os jovens infratores em sua recuperação, priorizando a adoção de penas alternativas. Em relação a esses jovens, para um maior proveito da sociedade, a intervenção do Estado deveria se dar no sentido de provê-los de alternativas, ao invés de encarcerá-los nas “escolas do crime” que se tornaram as penitenciárias brasileiras. Considerar a possibilidade de anistia de crimes relacionados ao tráfico de drogas (analisando caso a caso), como estratégia de combate à exclusão social.

Princípio Ativo – por uma nova política de drogas

principioativo.rs@gmail.com



[1] - Alguns médicos recomendam o uso de maconha a pessoas doentes de Aids por sua capacidade de despertar o apetite, ou ainda por uma capacidade de fazer com que os enjôos decorrentes da ingestão do “coquetel” diminuam.

[2] - O congresso nacional discute a reformulação da Lei 6368, de 1976. O PL 8123, de autoria do Deputado Paulo Pimenta, vem sendo erroneamente anunciado como u m projeto de descriminalização do uso de drogas no Brasil. Nada mais equivocado: trata-se, quando muito, de um projeto de despenalização, pois prevê o fim da pena de prisão ao usuário de drogas, mantendo, porém, outros níveis de penalização.

[3] - Para uma leitura mais crítica da dita “Justiça Terapêutica”, ver a entrevista do ex-secretário de segurança do Rio de Janeiro, Nilo Baptista, para a revista Caros Amigos de agosto de 2003 (MORETZSOHN, Sylvia, et alli. “Todo crime é político”: Entrevista com Nilo Baptista. Caros Amigos. São Paulo: Ano VII, n.77, Ago. 2003. p. 28 – 33).

[4] - Considera-se aqui o uso de drogas descontextualizado de seus vínculos com o comércio ilegal, pois entende-se que estes vínculos só existem enquanto produto das dinâmicas proibicionistas.

Thursday, December 22, 2005

significados em disputa:

permanência e mudança nos usos de drogas e seus sentidos

“É a significância que transforma um simples acontecimento em uma conjuntura fatal”.

Marshall Sahlins, em Ilhas de História

I.

"Sou contra. O problema da legalização é de se tornar acessível e tolerável em nossa sociedade assim como é hoje o cigarro e o álcool. Aquele que consome maconha tem uma grande probabilidade de passar a consumir outras drogas piores como crack, cocaína, ecstasy e heroína. E aquele papinho de que eu fumo de vez em quando e não sou dependente é a mesma desculpa que o alcoólatra dá que só bebe socialmente. E ainda aqueles que estudam a espiritualidade, sabem as conseqüências do uso da maconha no campo espiritual".

Rafaella Klauck, 25 anos, estudante de Psicologia

"Sou músico e usuário de canabis. Fumo todos os dias e para mim faz bem. A maconha faz com que eu veja as coisas de uma maneira diferente da usual, abre minha mente, aguça minha criatividade e faz pensar em meus atos como se eu me enxergasse de fora. Devo muita coisa do que sou à bendita erva. Evoluí muito às custas da mesma. É importante apenas saber usar e não ser escravo de vício algum, a partir do momento que as drogas passam ser a razão do seu viver, você precisa reavaliar seus conceitos. Sou a favor da legalização, pois acho uma hipocrisia o cigarro e a bebida (que são tão nocivos ou até mais) serem vendidos a qualquer criança na padaria da esquina e a maconha ser tão marginalizada. Eu compro minha erva com MEU dinheiro, fumo na MINHA casa, estou queimando MEUS neurônios e sujando MEU pulmão...quem tem o direito de dizer que eu não posso fumar??? A polícia trata o usuário como criminoso, às vezes o suborna ou o humilha. Todo mundo sabe que na verdade os policiais protegem os traficantes e ganham bem por isso, ou seja, quem lucra com o crime fica impune e quem aprecia fumar um beck no final da tarde corre o risco de ir pra cadeia. Afirmo que tem muita gente graúda como deputados, senadores e até governadores envolvidos com o tráfico e por isso não é legalizado, não é economicamente legal para eles... por de baixo dos panos, eles tiram mais e ninguém tem controle. Não vou cair na ladainha de dizer que em países de primeiro mundo a maconha é legalizada, pois isso todo mundo já sabe e parecem não se importar. Alô! Legalizando a maconha o crime diminui... O ponto é: em toda a história da humanidade a maconha NUNCA matou ninguém. Não existe um só caso de overdose... A maconha faz mal? SIM, faz. Mas até aí costeleta de porco e pinga também fazem... Minha vó já dizia: ‘Tudo em excesso faz mal’, seja cerveja, maconha, chocolate ou até sexo”.

Roger Marx, 25, músico[1]

As declarações acima transcritas expressam duas concepções muito distintas acerca do uso de drogas, concepções estas bastante disseminadas em nosso meio social e que convivem entre si e com uma série de outras, mais ou menos parecidas com cada uma delas. Essa diversidade contrasta fortemente com uma idéia corrente, principalmente entre alguns médicos e profissionais de saúde (e freqüentemente repetidas pela grande mídia e por grande parte do discurso institucionalizado), segundo a qual o uso de substâncias psicoativas pode ser compreendido, em seus efeitos e sentidos, a partir do estudo de características objetivas e presentes na própria constituição química dessas drogas. Estas características seriam as determinantes do caráter da experiência do usuário.[2]

Nesse trabalho, proponho uma reflexão acerca de alguns elementos que poderiam operar na construção dessa diversidade de sentidos. Parto do entendimento de que esses múltiplos significados provêm mais de contextos culturais do que de uma característica intrínseca às substâncias. Assim, faço uso das noções de representação seletiva e de estrutura prescritiva, tais como apresentadas por Marshall Sahlins e busco, como esse autor, identificar como,

por um lado, as pessoas organizam seus projetos e dão sentido aos objetos partindo das compreensões preexistentes da ordem cultural. Nesses termos, a cultura é historicamente reproduzida na ação. [...] Por outro lado, entretanto, como as circunstâncias contingentes da ação não se conformam necessariamente aos significados que lhe são atribuídos por grupos específicos, sabe-se que os homens criativamente repensam seus esquemas convencionais. É nesses termos que a cultura é alterada historicamente na ação.[3]

Meu ponto de partida é, portanto, a idéia de que a cultura fornece o critério, a lógica através da qual os fenômenos e as contingências são ordenados sistematicamente (o discurso institucionalizado), de modo a produzir um sistema de classificações coerentes, em referência ao qual os acontecimentos são compreendidos. No entanto, os sujeitos, ao confrontarem esses significados culturais com suas experiências concretas, por vezes os reavaliam e ressignificam. Por meio de uma “filosofia da ação simbólica” é possível buscar um entendimento das formas pelas quais esses processos de permanência e mudança coexistem e se dão em relação a diversos fenômenos, dentre os quais o que aqui me interessa é o fenômeno do uso de drogas na nossa sociedade.

Evidentemente, Sahlins não pensava nesse fenômeno quando formulou sua teoria, descrita na obra Ilhas de História. Entretanto, acredito que uma teoria não é algo estanque, restrito ao fenômeno a que, originalmente, se propunha oferecer uma explicação. Trata-se, ao contrário, de um recurso para explicar as realidades que nosso próprio contexto sócio-histórico coloca como mais urgentes. Estou ciente, no entanto, de que a teoria apresentada por Sahlins só é explicativa do objeto deste trabalho dentro de alguns limites, que, pretendo, fiquem claros ao longo do desenvolvimento da reflexão.

Considerando os diversos significados existentes para o consumo de substâncias psicoativas como social e culturalmente construídos é possível verificar que alguns deles são institucionalizados, em detrimento de outros. Essa institucionalização constitui uma “cultura oficial” que se apresenta como fornecedora, para os indivíduos, da verdade acerca das coisas e dos fenômenos, em bases objetivas, interpretando os significados marginais, nesse caso, ora como doença, ora como crime. Assim, uma segunda questão se coloca: como ocorre a manutenção de algumas significações como parte de uma cultura oficial, ainda que haja tanta resistência por parte de alguns indivíduos em aceitá-las?

Estou convencido de que é uma questão um tanto ampla, cercada de inúmeras sobredeterminações históricas e que um trabalho monográfico e meramente teórico seria insuficiente para respondê-la em sua totalidade. Porém, creio ser possível, através da teoria de Sahlins que investiga as relações entre permanência e mudança em sistemas culturais, lançar luzes sobre alguns aspectos relevantes na compreensão de tal questão.

II.

Não se trata, aqui, de uma reconstituição acerca de como alguns significados vieram a se institucionalizar, no que se refere ao uso de drogas, nem de buscar oferecer uma explicação teórica profunda sobre as formas através das quais se constituem as culturas enquanto um conjunto observável, mais ou menos consistente e portador de um conteúdo determinado e discursivamente articulado. Assim, a história da proibição do uso de certas substâncias psicoativas, e de quando e porquê esse uso passou a ser considerado um problema em nossa sociedade, ainda está por ser contada, em especial para o caso brasileiro, e não será abordada mais do que de passagem no presente trabalho. Entretanto, seria ingênuo pensar que essa proibição adveio fundamentalmente de uma pressão social sobre os governos, em decorrência de significados negativos atribuídos pela sociedade aos usos de algumas substâncias. E, definitivamente, este não é o objetivo a que me proponho.

É preciso ter em mente a complexidade das sociedades atuais, principalmente no que diz respeito a decisões políticas e/ou econômicas, que é o caso da proibição de algumas substâncias psicotrópicas. Nesse sentido, é possível que não houvesse, à época da proibição no Brasil, uma cultura disseminada de oposição ao uso de tais substâncias. De fato, alguns trabalhos históricos acerca da proibição da maconha no Brasil referem que se tratava de uma planta fumada costumeiramente entre negros e índios de regiões do norte e do nordeste do país e que, a partir de uma série de relatos médicos essa prática foi enquadrada enquanto contravenção, de modo que não se tratou de uma questão debatida amplamente pela sociedade.[4] A proibição ocorreu, assim, através de uma decisão “de gabinete” e, só depois se institucionalizou, a partir dessa perspectiva médica, o pensamento de que drogas como a maconha são, necessariamente, perniciosas e trazem abalos à vida do usuário.[5] Ou seja, a proibição teria vindo antes da representação que a sociedade faz da substância, sendo esta representação mais uma decorrência do que uma causa da adoção da legislação. Essa hipótese me permite pensar na manutenção de tais políticas como possível a partir da reprodução de esquemas culturais que, uma vez institucionalizados, ou seja, cristalizados e transmitidos pelas instituições familiares, sociais e estatais, constituem uma realidade preexistente que fornece o ponto de partida das representações e dos significados que cada indivíduo produzirá sobre as práticas de uso de drogas na nossa sociedade.

Independente da origem da proibição, porém, o fato é que se institucionalizou um determinado pensamento acerca das drogas tornadas ilícitas. Neste trabalho, pretendo analisar esse aspecto: como a sociedade, ao se deparar com a proibição de certas substâncias, proibição esta motivada por discursos particulares (discursos médicos) e seletivos (pois promotores de certas características das drogas como determinantes do “ser” desses objetos), aderiu a tais discursos, reproduzindo-os e conferindo às substâncias em questão um significado possível (que passou a ser o significado “dado” culturalmente aos indivíduos), mas não o único. Utilizo, como já foi anunciado na introdução, as noções de representação seletiva e de estrutura prescritiva, buscando compreender esse processo. Não se trata, contudo, de pretender explicar, aqui, a origem da proibição de algumas drogas através de representações seletivas culturalmente constituídas no interior de estruturas prescritivas. Com certeza, a proibição se vincula a uma série de outros processos ligados à política internacional, interesses econômicos e corporativos (e à legitimação do saber médico)[6] e a uma vasta gama de fatores que necessitariam de uma pesquisa histórica de peso a fim de serem melhor compreendidos. Meu objetivo é explicar, operacionalizando os conceitos de Sahlins, o modo pelo qual construções simbólicas institucionalizadas a partir de “conjuntos de saberes positivos”[7]vieram a contribuir para a manutenção dessa cultura oficial e, também, o modo pelo qual sujeitos situados nessa cultura têm a possibilidade de reavaliar seus conceitos a partir da referencialidade de suas práticas e experiências.

Podemos, assim, pensando a partir desses conceitos apresentados por Sahlins, conceber como os eventos são inseridos em categorias preexistentes, passando o mundo a ser conhecido como instância lógica dos conceitos que fundamentam os sistemas simbólicos culturalmente construídos. De imediato, então, o simples exercício da linguagem já se apresenta como constituinte do ato de classificação simbólica por excelência, afinal, como nos diz Cassirer, “a linguagem não entra em um mundo de percepções completamente objetivas apenas para adicionar aos objetos - já dados e claramente distinguíveis uns dos outros – ‘nomes’ que seriam somente signos externos e arbitrários; ela própria é uma mediadora na formação dos objetos”, e Sahlins: “as categorias pelas quais a experiência é constituída não surgem diretamente do mundo, mas de suas relações diferenciais no interior de um esquema simbólico”.[8]

Ora, os discursos, as definições e os sentidos atribuídos ao uso de psicoativos, se interpretados segundo essa linha de pensamento, dizem mais respeito ao esquema simbólico no interior do qual se produziram do que às substâncias elas mesmas enquanto objetos do mundo físico. Então, se “cada esquema cultural particular cria as possibilidades de referência material para pessoas de uma dada sociedade”[9], sendo que essas referências não são as únicas possíveis, podemos compreender como os mesmos psicotrópicos, utilizados em contextos simbólicos diversos, ensejam significados também diversos e mesmo “efeitos” diferentes em seus usuários. De outro modo, como explicar a inexistência de distúrbios sociais (sempre apontados, em nossa sociedade, pelos discursos médicos reproduzidos pelo senso comum, como inerentemente ligados ao consumo de drogas, pois advindos de propensões motivadas nos usuários por propriedades químicas dessas substâncias) em contextos de uso religioso, místico, sagrado, terapêutico ou produtor de laço social de psicoativos como, por exemplo, a maconha ou a ayahuasca?

Edward MacRae faz referência a diversos casos de uso desregrado de drogas que, uma vez em contato com o uso ritualizado do chá de ayahuasca, foram assumindo, no contexto de uma significação religiosa para o consumo da substância, características absolutamente diversas daquelas habitualmente relacionadas ao uso de psicoativos. Trata-se de casos de pessoas que, “com um passado de uso desregrado de drogas e com dificuldades de inserção numa sociedade que atravessa severa crise social, econômica e moral”, ao participarem das atividades de uma seita religiosa ligada ao uso do chá, passaram a contar com “um importante referencial moral”,[10] iniciando um verdadeiro processo de “apaziguamento de tensões familiares”, no que constituem exemplos contundentes de um uso de uma substância psicoativa que, inserido em um esquema simbólico específico, contribui na consolidação de estilos de vida nada problemáticos. Como conclui MacRae, “o uso religioso do chá psicoativo ensejou a criação de instituições que provêm muitas pessoas com os arcabouços éticos, sociais e culturais, em torno dos quais construíram suas vidas” e “os diversos estudos antropológicos e históricos realizados sobre esse uso da bebida têm ressaltado a conduta pacífica e ordeira dos adeptos das diversas seitas, cujos valores básicos coincidem com aqueles considerados emblemáticos das sociedades cristãs ocidentais. Longe de levar a um uso abusivo e destrutivo de substâncias psicoativas, a tendência mais notada é a de promover estilos de vida recatados e austeros, voltados para o culto à espiritualidade e aos valores familiares e comunitários”.[11]

Reflexões como essa nos levam a pensar no poder desses sistemas de classificação dos objetos e fenômenos da vida prática. Quer dizer, podemos pensar em como a posição relativa que o uso de drogas ocupa no sistema de classificação da nossa sociedade contribui decisivamente na constituição de situações de violência e no desencadeamento de processos conflituosos: a partir de tal perspectiva nos é possível considerar que o significado atribuído às práticas de uso de drogas interfere profunda e inevitavelmente na consolidação da violência inerentemente atribuída ao “mundo das drogas”, fazendo do estudo dos contextos socioculturais algo fundamental na compreensão desse fenômeno.

Mas vamos tomar mais de perto, para fins de análise, os discursos estruturais em vigência acerca das drogas e do seu uso nas sociedades ocidentais atuais.

O signo utilizado é “drogas”. Os objetos empíricos aos quais ele se refere são a maconha, a cocaína, a heroína, etc. Trata-se de objetos mais particulares do que o signo, que é amplo em demasia. Mas também, sob outro ponto de vista, esses objetos são mais gerais do que seus signos, já que apresentam, sob a forma de experiência, mais propriedades e relações do que podem ser escolhidas e valorizadas pelo signo correspondente, de modo que os discursos sobre as drogas não estão em condições de dar conta adequadamente dos objetos a que se referem. Assim, quando se fala em uso de maconha, se faz referência a uma série de efeitos mais ou menos objetivos que esta droga causaria. Contudo, essa diversidade de efeitos é extremamente ampla e não se restringe àqueles que são referidos como “os” efeitos do uso dessa substância, dificultando mesmo o apontamento daqueles que seriam os efeitos “principais”. Se somarmos a isso o poder de determinação contido nos múltiplos significados possíveis para essa prática (poder que interfere, como visto acima, diretamente sobre a experiência psicoativa que o usuário terá), chegamos a um quadro em que buscar os sentidos dos usos de drogas em análises químicas das substâncias reduz drasticamente a nossa real compreensão acerca do fenômeno.

Cada cultura, então, ao tomar a maconha como objeto de reflexão e, conseqüentemente, classificação, centra seu foco e promove, como qualidade definidora do fenômeno, alguns desses efeitos, a saber, expressamente aqueles que melhor se inserem no sistema classificatório já existente (construído, em nossa sociedade, a partir dos pareceres médicos e das análises bioquímicas). É esse sistema que vai operar como gerador de sentido para os objetos e práticas do mundo das ações, construindo a si mesmo sobre uma base lógica onde cada elemento se define em relação aos elementos já assentados e conceitualizados, que servem de fundamento para o pensamento. Como observa Sahlins, “sempre há um passado no presente, um sistema a priori de interpretação”.[12]Se lembrarmos, então, que os primeiros discursos que assumiram um caráter estrutural acerca do uso da maconha foram os discursos médicos, poderemos conceber razoavelmente o modo como esses discursos se adequaram coerentemente a concepções anteriores (se fundamentando em uma idéia de Ciência enquanto conhecimento neutro e objetivo)[13] e como eles vieram a influenciar em concepções futuras (inclusive, nas políticas que conduziram à criminalização daquilo que, até então, era compreendido como um hábito de negros e pobres de regiões afastadas). Sobre esse tipo de reflexão quanto aos modos pelos quais os pensamentos se institucionalizam e, uma vez institucionalizados, passam a fornecer os critérios e as categorias para o pensamento dos sujeitos em contato com aquelas instituições, é interessante reportar à leitura de Mary Douglas. Essa autora oferece elementos para a reflexão sobre a permanência das instituições e dos discursos e valores que, em dado momento da história de uma comunidade, se cristalizam e concretizam em suas instituições sociais.[14]

Retomando uma perspectiva mais próxima de Sahlins, se poderia pensar nos modos pelos quais os discursos médicos se elevaram à condição de definidores de certos fenômenos, como, por exemplo, o uso de drogas, se pensarmos que, “agindo a partir de perspectivas diferentes e com poderes sociais diversos para a objetivação de suas interpretações, as pessoas chegam a diferentes conclusões e as sociedades elaboram os consensos, cada qual a sua maneira”.[15] Essa percepção é importante para o presente trabalho que, no entanto, também se preocupa em procurar apontar as formas como os sujeitos reelaboram essa estrutura prescritiva[16] de significados.

Maurício Fiore oferece, em um interessante artigo, uma reflexão bastante apropriada para o aprofundamento dessa discussão. Nesse texto, através de entrevistas com médicos, análises de publicações da grande mídia e de discursos diluídos na sociedade, o autor empreende um estudo sobre como o uso do termo “drogas” foi se consolidando, a partir de um cenário de disputa do significado do conceito, e assumindo um caráter definidor das representações feitas na nossa sociedade em torno das práticas de uso das mais diversas substâncias psicoativas. Assim, Fiore se refere, por exemplo, a como, nos discursos acerca das “drogas”, o uso do termo no singular operou sobre as representações feitas sobre as práticas a que os termos se referem, de modo que a pluralidade de substâncias, contextos e usos foram sendo reduzidos à “questão da droga”:

O singular indica que a experiência do dispositivo é maior do que o conjunto; a soma das partes, as substâncias psicoativas, é menor que seu conjunto, a questão da ‘droga’: carregada de negatividade intrínseca, a ‘droga’singularizada pode representar todo o complexo universo que envolve sua produção, distribuição e consumo.[17]

Pensemos agora no que acontece com uma droga classificada, em nossa sociedade, na categoria “medicamento”. Pode ser, quem sabe, uma droga potente como o Prozac, ou mesmo a aspirina. A ingestão de substâncias como essas também produz uma série de “efeitos” no organismo. Um antidepressivo como o Remeron gera uma sonolência e uma afetação dos sentidos e capacidades motoras bastante comparáveis a certos quadros atribuídos ao uso de maconha. No entanto, as propriedades destacadas no discurso oficial acerca das drogas psiquiátricas são aquelas que melhor corroboram com a categoria na qual tais drogas estão inseridas, a categoria de medicamentos. As propriedades contraditórias com a classificação estabelecida são entendidas, no esquema simbólico, como “efeitos colaterais”, ou seja, como “acidentes” e não como “essência” da coisa. Voltando à maconha e, neste caso, também à heroína, sua classificação como “droga” impede que a atenção se ponha em outras de suas propriedades, notadamente as medicinais (tradicionalmente e mesmo já cientificamente comprovadas em diversos casos).

Por fim, apresento um exemplo ainda mais corriqueiro: o chimarrão. No Rio Grande do Sul o consumo dessa substância é tradicional, estando inserido, no esquema simbólico constituído na região, como um laço social entre indivíduos e grupos. Ora, a erva-mate apresenta propriedades estimulantes que alteram funções fisiológicas do organismo humano (o que a caracterizaria, segundo a definição canônica da Organização Mundial da Saúde, como uma droga)[18] mas estas propriedades não são evidenciadas, na constituição cultural do significado do consumo do chimarrão, como propriedades definidoras do “ser” dessa prática, de modo que tomar chimarrão é, no sistema simbólico da cultura tradicional gaúcha, um costume, um laço social perfeitamente inserido e relacionado logicamente com outros conteúdos e práticas constituintes desse universo simbólico. Exemplos semelhantes abundam. Destaco o caso típico do vinho. Trata-se de uma bebida alcoólica, uma droga, portanto. No entanto, possui um uso religioso tradicional, tendo papel importante nos ritos cristãos. Em nossa sociedade, o uso do vinho nesses rituais não é classificado como um uso de droga e tampouco abundam registros de abuso da substância nesse contexto ritual. Afinal, opera aí, novamente, um código cultural, um sistema de significados que ultrapassa meras análises químicas e que compreende o uso em contexto ritual do vinho como um aspecto vinculado à categoria do sagrado e não a uma simples alteração da consciência. Se pensarmos no uso do haxixe em comunidades dos Himalaias[19]e no uso da maconha em comunidades jamaicanas específicas[20]e em tribos do interior do Maranhão, poderemos verificar como estes usos estão, do mesmo modo, coerentemente posicionados nos esquemas simbólicos dessas populações, não constituindo, por não significarem, objetos associados a conflitos e rupturas no interior desses grupos.

Segundo Henman, “o contexto em que a maconha é mais consumida [entre os índios tenetehara] ocorre durante a realização de trabalhos que exigem esforços físicos. Acredita-se que a planta tem efeito estimulante, ajudando na execução das tarefas pesadas associadas às derrubadas e plantações”.[21] À essa classificação do uso da maconha, tão diversa da concepção dominante na nossa cultura, se soma a significação conferida, por este mesmo grupo indígena, ao uso do tabaco em seus rituais de xamanismo: “o estado de transe – uma autêntica narcose, com o pajé caído duro no chão por um período de dez a vinte minutos – é atingido unicamente pelo uso do tabaco, sendo a fumaça engolida para o estômago, acompanhada de violentos tragos e gesticulações”.[22]

Trata-se de exemplos contundentes de assimilação do uso de uma substância psicoativa a um esquema de significação culturalmente construído e bastante diverso daquele que a nossa sociedade estabeleceu (me refiro aqui, obviamente, ao esquema institucionalizado e dominante no nível discursivo). Como afirma, por fim, Henman, “ao rotular os índios tenetehara como meros ‘maconheiros’ [o que fazemos ao apreender suas práticas por meio dos nossos mecanismos de significação], perdemos a oportunidade de aprender uma lição sobre o uso adequado desta planta, de inestimável valor para a nossa civilização”.[23]

Voltando a uma linha mais próxima de Sahlins, e pensando sobre o objeto deste trabalho, podemos dizer que, nas nossas sociedades complexas, o significado institucionalizado acerca do uso de drogas constitui o ponto de partida na constituição dos sentidos individuais dessa prática. Trata-se de um fenômeno enquadrado naquilo que Baratta chama de um “sistema fechado”:

“O sistema das drogas constitui um exemplo significativo de subsistema fechado. Uma de suas principais características é o fato de que os atores se condicionam reciprocamente, na sua atitude positiva com respeito ao status quo da política de drogas. A este condicionamento positivo se subtrai unicamente um grupo de atores: o que está constituído pelos drogaditos. A presença deste único grupo ‘desviado’, neste caso, os drogaditos (desviados com relação ao sentido da realidade aceita pelos demais), reforça o sistema fechado, aumentando sua capacidade de auto-reprodução”.[24]

Baratta faz referência aos modos pelos quais, “no sistema da droga, a reação social criminalizadora produz por si mesma a realidade que a legitima” e, citando Robert K. Merton, procura dar conta “desse processo de auto-reprodução ideológica e material do sistema”[25] que, ao sustentar uma determinada imagem da realidade, dá origem às políticas que operarão na “construção do problema social”, caracterizando um mecanismo correspondente a uma “profecia que se auto-efetiva”.[26] Luiz Eduardo Soares parece também se apoiar nessa teoria quando analisa a trajetória do traficante Marcinho VP (assassinado na penitenciária em que cumpria pena, em 2003) e a forma como todos os atores sociais envolvidos na determinação do seu destino (ele próprio, seus parceiros, a mídia, a polícia) se conduziram de modo a reiterar as identidades e os significados construídos culturalmente, em um exemplo da auto-reprodução no nível da ação prática, a partir dos sistemas simbólicos, de uma estrutura prescritiva conformadora da realidade às suas representações.[27] Deste modo, e voltando mais propriamente à reflexão sobre o uso de drogas, a ruína de vidas saudáveis, devida a essa prática, pode estar já anunciada em nossa cultura a partir da posição simbólica que tal comportamento ocupa no sistema de significado (o qual exerce poder sobre os esquemas de vida dos indivíduos, de modo a tornar fatos as suas representações). Assim, a ação prática dos sujeitos imbuídos desse sistema simbólico está orientada no sentido de realizar suas representações, ou seja, de produzir situações violentas associadas ao uso de drogas, de encarar tal prática necessariamente como nociva e problemática, de enxergar nos consumidores pessoas doentes ou criminosas, de projetar sobre a figura do comerciante dessas substâncias as mais pérfidas intenções, enfim, de atualizar tudo o que se concebe, no nível do conceito, como a “realidade” do fenômeno. A espiral de conflitos familiares, contravenções, violências e sofrimentos estaria, assim, já anunciada a partir da significação culturalmente dada a tais conteúdos. A profecia tende sempre a se auto-efetivar.

O significado do uso de drogas nas sociedades ocidentais atuais se constituiu, então, se a apropriação dos conceitos de Sahlins for adequada, a partir de uma representação seletiva dos significados possíveis para a compreensão dessa prática, tomada como objeto de reflexão e classificação. Conforme já mencionado, nos processos de representação seletiva um significado é posto em primeiro plano em relação a todos os outros significados possíveis. Assim, a significação do uso das drogas tornadas ilícitas enquanto uma prática ofensiva, tanto ao organismo do usuário quanto ao organismo social, significação esta que encontra seu apoio e sua história nos pareceres médicos do início do século XX, se sobrepõe, em nossa cultura, às significações que se referem a esse uso como uma prática terapêutica, lúdica, mística, introspectiva ou espiritual, caracterizando um processo de classificação no qual a aposta em certos atributos do objeto ou da prática, e a desconsideração “científica” de outros desses atributos, cristaliza como verdade uma possibilidade. Mas, como esses significados postos em primeiro plano se refletem nas práticas dos atores sociais, pois as orientam, eles acabam desencadeando uma série de conseqüências como, por exemplo, a estigmatização e marginalização dos usuários, a potencialização de conflitos, além de uma série de arbitrariedades e corrupções (internações compulsórias, pagamentos de subornos a policiais, etc). Há, além disso, uma marcante incoerência que se estabelece quando os esquemas simbólicos se concretizam nas práticas sociais e se evidencia a promoção de sentidos diversos no que se refere a outros psicoativos como, por exemplo, as bebidas alcoólicas. Mas de onde vem o sentido conceitual que acaba por engendrar essa cadeia de conseqüências lógicas?

O sentido conceitual é determinado, segundo Sahlins, de acordo com sua posição diferencial no esquema total de objetos simbólicos.[28] Assim, o sentido de “uso de drogas” poderia ser determinado em relação à “não-uso de drogas”, construindo-se culturalmente a concepção de “alteração de consciência” (e aqui são particularmente notáveis as referências comumente feitas ao álcool, classificando-o como uma substância específica, em vez de incluí-lo na categoria “drogas”).[29] A consciência alterada, enquanto construção cultural, será definida, pois, em relação a uma idéia de “consciência natural”, “não alterada”, ou seja, saudável. Logicamente, advirá desse construto a noção de uso de drogas como patologia individual e social. Em relação a esse ponto, o antropólogo Anthony Henman apresentou, em recente simpósio realizado nas dependências da Universidade de São Paulo, uma interessante crítica à criação de oposições entre “estados de consciência”. Segundo ele, não há nada que, necessariamente, nos faça crer nessa dualidade, de modo que a consciência humana poderia ser apreendida conceitualmente a partir de um monismo, ou seja, de uma unidade conceitual em vez de uma oposição arbitrária entre “natural” e “alterado”.[30]

III.

Mas então, retomando a análise, se a cultura tem, a partir da operação que faz de sistemas de classificação produtores de significados, um poder definidor das concepções dos indivíduos e grupos que a constituem, como pode o uso de drogas ilícitas ser tão disseminado no seio de sociedades que o classificam como nocivo, perturbador da ordem e gerador de violência e, fundamentalmente, como pode se produzir, no interior dessas mesmas sociedades, discursos tão variados e mesmo antagônicos ou contrários aos condicionamentos culturais?

Sahlins afirma que as classificações culturalmente construídas podem, ou não, ser definidoras da experiência dos indivíduos. Se pensarmos nisso tendo em vista o uso de substâncias psicoativas, conceberemos que nada garante que os indivíduos utilizem as categorias existentes dos modos prescritos, e isso ainda que os significados do uso de drogas estejam ligados, em nossa sociedade, a uma estrutura prescritiva. Assim, “o signo, enquanto sentido, se torna duplamente arbitrário na referência: ao mesmo tempo uma segmentação relativa e uma representação seletiva”,[31]o que ocorre tanto no nível da cultura quanto no da possível ressignificação desses conteúdos por parte do indivíduo em contato direto com o mundo. Nesse sentido, meu foco se dá sobre as representações seletivas que as sociedades ocidentais atuais engendraram acerca dos psicotrópicos e de seus usos, mas, também, se põe sobre os modos como esses significados por vezes se transformam ao entrar em contato, por meio da experiência de indivíduos e grupos, com as determinações do mundo empírico. Quer dizer, trata-se de oferecer elementos para se pensar, simultaneamente, nas formas pelas quais significados culturalmente dominantes se reproduzem e se disseminam no interior da nossa sociedade e nas maneiras através das quais os sujeitos, em suas trajetórias de vida, se relacionam com esses significados e os confrontam com suas experiências, por vezes reformulando-os. Ou, nos termos de Sahlins, trata-se de pensar na “existência e na interação dual entre a ordem cultural enquanto constituída na sociedade e enquanto vivenciada pelas pessoas: a estrutura na convenção e na ação, enquanto virtualidade e enquanto realidade”.[32]

Quando as pessoas colocam em ação seus conceitos e categorias, estes entram em relação ostensiva com um mundo de razões próprias, um mundo “que pode escapar facilmente dos esquemas interpretativos de um dado grupo humano”. Por isso, Sahlins afirma que “a práxis é um risco para os significados dos signos”,[33] ou seja, o mundo pode negar os conceitos a ele indexados. Assim, me valendo de algumas assertivas apropriadas pelo senso comum dos discursos “especializados” sobre uso de drogas, o consumo de maconha pode, “surpreendentemente”, não significar “a porta de entrada para o uso de outras drogas”, o uso de psicoativos pode, na prática, não constituir “um caminho sem volta” e, pasmem, o uso de drogas pode não ser, intrinsecamente, uma prática geradora de violência, conflitos sociais e familiares e, portanto, um flagelo em bases objetivas. Trata-se, aqui, de ter em mente aquilo que Marshall Sahlins chama de “reavaliação funcional das categorias”[34], um processo que, de certa forma, já vem ocorrendo em nossa sociedade, mesmo em nível estrutural, haja vista se tomarmos em conta que, em 1961, quando da proscrição da maconha pela Organização das Nações Unidas, esta foi qualificada como droga de alta periculosidade e potencial ofensivo, ao passo que, hoje em dia, diversos países, reconhecendo seu valor terapêutico e seu estatuto de “droga leve”, já realizaram substanciais alterações em suas legislações acerca do consumo desse psicoativo.

Retomando, em última análise, o objetivo primordial deste estudo, reitero a possibilidade de cada indivíduo, mesmo no interior de uma estrutura prescritiva, operar com os objetos simbólicos, no nível da ação prática, levando em consideração o seu “interesse” (termo utilizado por Sahlins)[35] em tais objetos, o que vem a influenciar na sua construção pessoal desses objetos, de modo a que poderão eles vir a ocupar diferentes posições nos esquemas de vida dos indivíduos e dos grupos que eles constituem a partir desses interesses e esquemas. Escreve Sahlins: “do modo como for implementado pelo sujeito ativo, o valor conceitual adquire um valor intencional, que pode ser diferente do seu valor convencional”.[36] Ora, daí os usos de drogas que parecem contradizer as determinações convencionais (subculturas praticantes de usos religiosos, recreativos, socializadores, a droga como signo de poder, força, paz, tranqüilidade, bem-estar... uma série de significados “inesperados”, que se constituem a partir das experiências de sujeitos e grupos que ressignificam conteúdos específicos no interior de um sistema simbólico convencionalizado). Faça-se, no entanto, a ressalva de que essas ressignificações “dependem das possibilidades dadas de significação, mesmo porque, de outro modo, seriam ininteligíveis e incomunicáveis”. Quer dizer, os sujeitos não engendram significados a partir do nada, de modo que é o substrato de sentido conferido pela cultura que lhes concede o universo de sentidos possíveis na significação dos objetos e práticas. Assim, significados não convencionais para usos de drogas tornadas ilícitas em nossa sociedade poderiam estar se constituindo a partir da observação de usos convencionais de outras substâncias (bebidas, remédios, etc). Ou seja, o sentido “inesperado” está, na verdade, sendo apropriado e tendo seu substrato no próprio esquema cultural dominante. Aí está, ainda que de relance, a expressão do mecanismo de permanência na mudança, ou o modo pelo qual “o antigo sistema é projetado adiante sob novas formas”.[37] Trata-se, entretanto, da operação, por parte dos indivíduos, de poderes criativos que, conforme Sahlins, não estão suspensos simplesmente pela ação significativa dos mecanismos culturais, mas, ao contrário, e a experiência comprova, encontram-se plenamente ativos, pulsantes e plenos de sentido próprio.

IV.

Uma vez isso compreendido, começa a se desfazer a idéia monolítica da cultura como determinante absoluto de significados (ela seria melhor descrita como determinante de possibilidades de significados) e, ao mesmo tempo, a idéia de que legislações proibitivas e práticas repressivas possam “sanar o mal” do uso de drogas. Primeiro porque a compreensão dos modos pelos quais interpretações que se pretendem definições são construídas no interior de sistemas simbólicos de classificação coloca em xeque a própria idéia de uso de drogas como prática intrinsecamente causadora de conflitos e violências e, segundo, porque essa mesma compreensão da construção de sentidos permite vislumbrar a simplificação que se faz quando se classifica como crime uma prática de múltiplos significados.

O problema maior, contudo, parece residir principalmente nas conseqüências dessa criminalização do uso e da venda de certas drogas: a constituição das organizações criminosas que se financiam e se armam a partir do comércio das substâncias proscritas, gerando uma série de danos sociais que ultrapassam em muito os danos que se podem relacionar diretamente ao consumo de psicotrópicos. Como aponta Alba Zaluar, “o crime organizado desenvolveu-se nos atuais níveis porque tais práticas socialmente aceitáveis [o jogo, as drogas e a diversão] e valorizadas foram proibidas por força da lei, possibilitando níveis inigualáveis de lucros a quem se dispõe a negociar com esses bens”. Assim, “as taxas de crimes violentos aumentaram em todos os países em que o combate à droga apela para a repressão, inclusive no Brasil”[38]e, como arremata a autora, a grande questão está em “analisar como a criminalização de um hábito ou gosto individual – ou seja, uma ação arbitrária e ilegítima do Estado [...] aprofunda a revolta e as carreiras criminosas dos jovens usuários de drogas”.[39]

Então, no nosso sistema social, a legitimidade conferida ao Estado para coibir o uso dessas substâncias pode ser entendida como uma legitimidade para a imposição de um significado convencional a todos aqueles que, por ventura, sejam flagrados “significando diferentemente” o uso de drogas, o que caracterizaria, segundo minha interpretação, uma estrutura prescritiva e um sistema fechado. Trata-se, creio, de uma conclusão de certo modo patética, mas que parece seguir logicamente da análise até aqui realizada e que se confirma empiricamente a partir da total incompreensão demonstrada, até então, por grande parte das autoridades constituídas acerca das especificidades de significados dos usos de drogas e das formas pelas quais esses significados se constroem, no âmbito cultural e no âmbito individual, pela constante confrontação de conceitos e classificações simbólicas com práticas, vivências e interesses constitutivos dos esquemas de vida dos indivíduos e dos grupos no interior de uma sociedade.

Deste modo, o significado do uso de drogas tem sido expresso nas sociedades ocidentais atuais como efeito direto de propriedades objetivas das substâncias em questão, ignorando o valor relativo do sentido dado pela sociedade ao fenômeno. Como escreve Gilberto Velho,

“a própria noção de tóxico e o conceito de drogas são altamente problemáticos e, dependendo do critério e da posição do investigador, podem abarcar desde a heroína ao papo-de-anjo. [...] existem n maneiras de utilizar as substâncias, em função de variáveis culturais e sociológicas. Estas não só se somam, como complexificam as distinções que possam ser registradas ao nível da análise bioquímica”.[40]

Nesta mesma linha segue Espinheira quando afirma, enfaticamente, que “as drogas não têm o mesmo efeito para pessoas socialmente diferentes!”[41]e, depois, acrescenta que “o uso de drogas, como estilo ou ethos, depende mais do usuário do que da droga que usa, e isso significa que não se pode atribuir à droga uma autonomia em relação ao indivíduo ou mesmo ao contexto social, mas, ao contrário, perceber o indivíduo e o seu contexto para compreender o tempo e os espaços das drogas em suas vidas”.[42] Espinheira prossegue em sua argumentação, oferecendo uma série de histórias e relatos nos quais “a droga é a mesma, no caso a maconha, mas os motivos para o uso e as razões dos atos praticados são completamente diferentes”, concluindo que “são as pessoas e sua subjetividade, na objetividade da realidade social e não as drogas [que conferem] a suposta autonomia do efeito delas”[43]e também que “os efeitos das drogas podem ser quimicamente parecidos, mas são culturalmente diferentes, o que equivale dizer, socialmente diferenciados porque as ações que deles resultam não têm o mesmo significado e, assim sendo, são também quimicamente outros”.[44] De minha parte, penso que, ao desconsiderar essas especificidades e essa pluralidade de sentidos e contextos envolvidos na constituição do que, afinal, significa o uso de drogas, se atendo tão somente aos significados institucionalizados a partir de uma perspectiva particular, a perspectiva médico-legal, as políticas públicas criminalizantes da produção, da distribuição e do uso das drogas tornadas ilícitas operam no sentido de fortalecer a cadeia de violências, conflitos, arbitrariedades e corrupções diversas nos sistemas policial e judiciário, afastando-se sensivelmente daquele que deveria ser o papel do Estado e contribuindo decisivamente no agravamento de um problema que é, em última instância, fruto de uma construção particular das sociedades contemporâneas. Como escreve Baratta, “a história das drogas, anterior à economia capitalista é, com raras exceções, um aspecto normal da história da cultura, da religião e da vida cotidiana em toda sociedade: não é a história de um ‘problema’”.[45]

Quer dizer, é à incompreensão de que os fenômenos devem ser pensados a partir da relação entre os acontecimentos no mundo e um sistema simbólico prescritivo de significados, por meio de esquemas classificatórios das práticas e objetos, que se poderia atribuir grande responsabilidade sobre a violência crescente que se associa comumente a certas características intrínsecas ao “mundo das drogas” (abstração que conjuga produtores, distribuidores e usuários de substâncias proibidas). E cito, por fim, novamente Sahlins, quando este afirma que “apesar de um evento, enquanto acontecimento, ter propriedades objetivas próprias, [...] não são essas propriedades, enquanto tais, que lhe dão efeito, mas a sua significância, da forma que é projetada a partir de algum esquema cultural”.[46]

Trata-se, então, a meu ver, de buscar, o Estado e a sociedade, no que se refere à abordagem dessa questão por meio de políticas públicas, a partir de uma compreensão mais apurada acerca do universo de sentidos envolvidos nos fenômenos do uso de drogas, a construção de modelos mais adequados que dêem conta dessa complexidade e, a partir do abandono de abordagens moralizantes e repressivas (que só maximizam conflitos e incompreensões diversas), se adotem formas de regulamentação mais condizentes com a multiplicidade de significados com que opera o ser humano na constituição do vasto espectro da sua liberdade existencial. Compreendidos os problemas, para além das superfícies, trata-se, pois, de constituir os mecanismos mais adequados para enfrentá-los, sob a forma de políticas públicas que respeitem a diversidade e a dignidade humanas e que, minimizando conflitos, maximizem possibilidades.

O uso de drogas, no contexto das sociedades ocidentais contemporâneas, tem sido sistematicamente condenado e apontado como gerador de uma série de desordens sociais e de conflitos violentos. Os discursos veiculados na mídia seguidamente fazem referência a essa prática como causadora de violência, seja a violência perpetrada pelas organizações criminosas do tráfico de drogas, seja pela associação do uso dessas substâncias com a aquisição de comportamentos agressivos. Esse é o significado institucionalizado em nossa sociedade acerca dos fenômenos de uso das drogas tornadas ilícitas. Atentar, contudo, para o mundo empírico e para outros usos dessas substâncias, em contextos diversos e com significados por vezes bastante diferentes dos acima mencionados nos fez considerar, em conjunto com uma leitura particular da obra de Marshall Sahlins (e apoiando-se em afirmações de outros autores), a multiplicidade de significados possíveis no entendimento e compreensão dessa prática.

Assim, penso ter contribuído minimamente para uma reflexão sobre a forma como nossa sociedade “oficializou” e mantém (ao menos no plano virtual ou no plano do discurso institucional) uma representação particular como sendo definidora do “ser” de uma prática que é, em si mesma, um vasto campo de possibilidades simbólicas e interpretativas. Ao mesmo tempo em que, no interior dessa mesma sociedade (como também em outras), sujeitos ativos constantemente ressignificam tais conteúdos a partir de suas experiências, explorando outras dessas possibilidades também dadas em nosso espectro cultural.

No horizonte dessa análise também esteve sempre presente a idéia, expressa por Sahlins, de se pensar nas relações que se estabelecem entre a permanência e a mudança de conteúdos simbólicos (e de práticas deles decorrentes) no interior de um mesmo sistema cultural. De fato, no que se refere aos fenômenos do uso de drogas, creio serem eles significativos dessa coexistência, explicitada na diversidade de concepções diluídas por toda a sociedade e, ao mesmo tempo, na presença de um discurso revestido de autoridade pela cultura oficial, discurso este que, respaldado pelas instituições mantenedoras, reprodutoras e divulgadoras da ordem cultural, e pretensamente objetivo e verdadeiro (portanto, “legítimo”), constitui, no entanto, uma das possibilidades de significação conferidas aos sujeitos por esta mesma ordem.

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[1] Depoimentos extraídos do site http://www.terra.com.br/jovem/falaserio/2005/03/30/006.htm em 18 de dezembro de 2005.

[2] FIORE, Maurício. Algumas reflexões a respeito dos discursos médicos sobre uso de “drogas”. Caxambu, 2002. Disponível em http://www.neip.info/downloads/anpocs.pdf, acessado em 19 de dezembro de 2005.

[3] SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. p. 7.

[4] HENMAN, Anthony e PESSOA JR, Osvaldo (orgs). Diamba Sarabamba: coletânea de textos brasileiros sobre a maconha. São Paulo: Ground, 1986.

[5] Segundo Rogério Rocco, “o Brasil orientou sua iniciativa legislativa com base nas resoluções da Convenção de Haia e a primeira norma editada com base nestas resoluções entrou em vigor ainda em 1921.”. ROCCO, Rogério. “A proibição no Brasil”. IN: ROBINSON, Rowan. O Grande livro da cannabis: guia completo de seu uso industrial, medicinal e ambiental”.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p. 105.

[6] FIORE, Maurício. Op. Cit. p. 4.

[7] FIORE, Maurício. Op. Cit. p. 2.

[8] SAHLINS, Marshall. Op. Cit. p.183.

[9] Idem. p.184.

[10] MACRAE, Edward. “A importância dos fatores socioculturais na determinação da política oficial sobre o uso ritual de ayahuasca.” In: ZALUAR, Alba (Org). Drogas e Cidadania: repressão ou redução de riscos. São Paulo: Brasiliense, 1999. p.39.

[11] Idem. p.40.

[12] SAHLINS, Marshall. Op. Cit. p.189.

[13] CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

[14] DOUGLAS, Mary. Como as instituições pensam. São Paulo: EDUSP, 1998.

[15] SAHLINS, Marshall. Op. Cit. p.10.

[16] Sobre esse conceito, Sahlins diz que “as ordens prescritivas tendem a assimilar as circunstâncias a elas mesmas, por um tipo de negação de seu caráter contingente e eventual” e também que “em um modelo prescritivo, nada é novo, ou, pelo menos, os acontecimentos são valorizados por sua similaridade com o sistema constituído. O que ocorre nesse caso é a projeção da ordem existente, mesmo quando o que acontece for sem precedentes. [...] Aqui, tudo é efetivação e repetição”. SAHLINS, Marshall. Op. Cit. p.13.

[17] FIORE, Maurício. Op. Cit. p.10.

[18] A OMS define “droga” como qualquer “substância que, quando administrada ou consumida por um ser vivo, modifica uma ou mais de suas funções, com exceção daquelas substâncias necessárias para a manutenção da saúde normal”. OMS apud FIORE, Maurício. Tensões entre o biológico e o social nas controvérsias médicas sobre o uso de “drogas”. Caxambu, 2004. Disponível em http://www.neip.info/downloads/t_mau1.pdf, acessado em 19 de dezembro de 2005.

[19] OLMO, Helena. Charas dos Himalaias. Cânhamo – revista de cultura canábica. Lisboa, número 3, p.20-29, out./nov. 2004.

[20] GONÇALVES, Pedro. Jamaica: como o ar que se respira. Cânhamo – revista de cultura canábica. Lisboa, número 2, p.28-35, ago./set. 2004.

[21] HENMAN, Anthony. “A guerra às drogas é uma guerra etnocida”. In: HENMAN, Anthony e PESSOA JR, Osvaldo (orgs). Op. Cit. p.103.

[22] Idem. p.104.

[23] Ibidem. p.110.

[24] BARATTA, Alessandro. “Introdução a uma sociologia da droga”. In: MESQUITA, Fábio e BASTOS, Francisco Inácio (orgs). Drogas e Aids: estratégias de redução de danos. São Paulo: Hucitec, 1994. p. 23-24.

[25] BARATTA, Alessandro. Op. Cit. p.22.

[26] Idem. p.23.

[27] ATHAYDE, Celso et alii. Cabeça de Porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. pp.100-108.

[28] SAHLINS, Marshall. Op. Cit. p.187.

[29] FIORE, Maurício. Tensões entre o biológico e o social nas controvérsias médicas sobre o uso de “drogas”. Caxambu, 2004. Disponível em http://www.neip.info/downloads/t_mau1.pdf, acessado em 19 de dezembro de 2005. p.7.

[30] HENMAN, Anthony. Ética humana, sabedoria das plantas. São Paulo: USP, 2005. Conferência apresentada no Simpósio “Drogas: controvérsias e perspectivas”. Arquivo de áudio disponível em http://www.neip.info/simposio_audio.html, acessado em 4 de outubro de 2005.

[31] SAHLINS, Marshall. Op. Cit. p.185.

[32] Idem. p. 9.

[33] SAHLINS, Marshall. Op. Cit. p.185.

[34] Idem. p. 10.

[35] Ibidem. p.187.

[36] SAHLINS, Marshall. Op. Cit. pp.187-188.

[37] Idem. p.11.

[38] ZALUAR, Alba. “A criminalização das drogas e o reencantamento do mal”. In: ZALUAR, Alba (org). Op. Cit. p.106.

[39] Idem. p.123.

[40] VELHO, Gilberto. “A dimensão cultural e política dos mundos das drogas”. In: ZALUAR, Alba (org). Op. Cit. p.24.

[41] ESPINHEIRA, Gey. “Os tempos e os espaços das drogas”. In: TAVARES, Luiz Alberto (coord.). Drogas: tempos, lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: EDUFBA, 2004. p.12.

[42] Idem. p.19.

[43] Ibidem. p.20.

[44] Ibidem. p.23.

[45] BARATTA, Alessandro. Op. Cit. p.39.

[46] SAHLINS, Marshall. Op. Cit. p.191.