significados em disputa:
permanência e mudança nos usos de drogas e seus sentidos
“É a significância que transforma um simples acontecimento em uma conjuntura fatal”.
Marshall Sahlins, em Ilhas de História
I.
"Sou contra. O problema da legalização é de se tornar acessível e tolerável em nossa sociedade assim como é hoje o cigarro e o álcool. Aquele que consome maconha tem uma grande probabilidade de passar a consumir outras drogas piores como crack, cocaína, ecstasy e heroína. E aquele papinho de que eu fumo de vez em quando e não sou dependente é a mesma desculpa que o alcoólatra dá que só bebe socialmente. E ainda aqueles que estudam a espiritualidade, sabem as conseqüências do uso da maconha no campo espiritual".
Rafaella Klauck, 25 anos, estudante de Psicologia
"Sou músico e usuário de canabis. Fumo todos os dias e para mim faz bem. A maconha faz com que eu veja as coisas de uma maneira diferente da usual, abre minha mente, aguça minha criatividade e faz pensar em meus atos como se eu me enxergasse de fora. Devo muita coisa do que sou à bendita erva. Evoluí muito às custas da mesma. É importante apenas saber usar e não ser escravo de vício algum, a partir do momento que as drogas passam ser a razão do seu viver, você precisa reavaliar seus conceitos. Sou a favor da legalização, pois acho uma hipocrisia o cigarro e a bebida (que são tão nocivos ou até mais) serem vendidos a qualquer criança na padaria da esquina e a maconha ser tão marginalizada. Eu compro minha erva com MEU dinheiro, fumo na MINHA casa, estou queimando MEUS neurônios e sujando MEU pulmão...quem tem o direito de dizer que eu não posso fumar??? A polícia trata o usuário como criminoso, às vezes o suborna ou o humilha. Todo mundo sabe que na verdade os policiais protegem os traficantes e ganham bem por isso, ou seja, quem lucra com o crime fica impune e quem aprecia fumar um beck no final da tarde corre o risco de ir pra cadeia. Afirmo que tem muita gente graúda como deputados, senadores e até governadores envolvidos com o tráfico e por isso não é legalizado, não é economicamente legal para eles... por de baixo dos panos, eles tiram mais e ninguém tem controle. Não vou cair na ladainha de dizer que em países de primeiro mundo a maconha é legalizada, pois isso todo mundo já sabe e parecem não se importar. Alô! Legalizando a maconha o crime diminui... O ponto é: em toda a história da humanidade a maconha NUNCA matou ninguém. Não existe um só caso de overdose... A maconha faz mal? SIM, faz. Mas até aí costeleta de porco e pinga também fazem... Minha vó já dizia: ‘Tudo em excesso faz mal’, seja cerveja, maconha, chocolate ou até sexo”.
Roger Marx, 25, músico
As declarações acima transcritas expressam duas concepções muito distintas acerca do uso de drogas, concepções estas bastante disseminadas em nosso meio social e que convivem entre si e com uma série de outras, mais ou menos parecidas com cada uma delas. Essa diversidade contrasta fortemente com uma idéia corrente, principalmente entre alguns médicos e profissionais de saúde (e freqüentemente repetidas pela grande mídia e por grande parte do discurso institucionalizado), segundo a qual o uso de substâncias psicoativas pode ser compreendido, em seus efeitos e sentidos, a partir do estudo de características objetivas e presentes na própria constituição química dessas drogas. Estas características seriam as determinantes do caráter da experiência do usuário.
Nesse trabalho, proponho uma reflexão acerca de alguns elementos que poderiam operar na construção dessa diversidade de sentidos. Parto do entendimento de que esses múltiplos significados provêm mais de contextos culturais do que de uma característica intrínseca às substâncias. Assim, faço uso das noções de representação seletiva e de estrutura prescritiva, tais como apresentadas por Marshall Sahlins e busco, como esse autor, identificar como,
por um lado, as pessoas organizam seus projetos e dão sentido aos objetos partindo das compreensões preexistentes da ordem cultural. Nesses termos, a cultura é historicamente reproduzida na ação. [...] Por outro lado, entretanto, como as circunstâncias contingentes da ação não se conformam necessariamente aos significados que lhe são atribuídos por grupos específicos, sabe-se que os homens criativamente repensam seus esquemas convencionais. É nesses termos que a cultura é alterada historicamente na ação.
Meu ponto de partida é, portanto, a idéia de que a cultura fornece o critério, a lógica através da qual os fenômenos e as contingências são ordenados sistematicamente (o discurso institucionalizado), de modo a produzir um sistema de classificações coerentes, em referência ao qual os acontecimentos são compreendidos. No entanto, os sujeitos, ao confrontarem esses significados culturais com suas experiências concretas, por vezes os reavaliam e ressignificam. Por meio de uma “filosofia da ação simbólica” é possível buscar um entendimento das formas pelas quais esses processos de permanência e mudança coexistem e se dão em relação a diversos fenômenos, dentre os quais o que aqui me interessa é o fenômeno do uso de drogas na nossa sociedade.
Evidentemente, Sahlins não pensava nesse fenômeno quando formulou sua teoria, descrita na obra Ilhas de História. Entretanto, acredito que uma teoria não é algo estanque, restrito ao fenômeno a que, originalmente, se propunha oferecer uma explicação. Trata-se, ao contrário, de um recurso para explicar as realidades que nosso próprio contexto sócio-histórico coloca como mais urgentes. Estou ciente, no entanto, de que a teoria apresentada por Sahlins só é explicativa do objeto deste trabalho dentro de alguns limites, que, pretendo, fiquem claros ao longo do desenvolvimento da reflexão.
Considerando os diversos significados existentes para o consumo de substâncias psicoativas como social e culturalmente construídos é possível verificar que alguns deles são institucionalizados, em detrimento de outros. Essa institucionalização constitui uma “cultura oficial” que se apresenta como fornecedora, para os indivíduos, da verdade acerca das coisas e dos fenômenos, em bases objetivas, interpretando os significados marginais, nesse caso, ora como doença, ora como crime. Assim, uma segunda questão se coloca: como ocorre a manutenção de algumas significações como parte de uma cultura oficial, ainda que haja tanta resistência por parte de alguns indivíduos em aceitá-las?
Estou convencido de que é uma questão um tanto ampla, cercada de inúmeras sobredeterminações históricas e que um trabalho monográfico e meramente teórico seria insuficiente para respondê-la em sua totalidade. Porém, creio ser possível, através da teoria de Sahlins que investiga as relações entre permanência e mudança em sistemas culturais, lançar luzes sobre alguns aspectos relevantes na compreensão de tal questão.
II.
Não se trata, aqui, de uma reconstituição acerca de como alguns significados vieram a se institucionalizar, no que se refere ao uso de drogas, nem de buscar oferecer uma explicação teórica profunda sobre as formas através das quais se constituem as culturas enquanto um conjunto observável, mais ou menos consistente e portador de um conteúdo determinado e discursivamente articulado. Assim, a história da proibição do uso de certas substâncias psicoativas, e de quando e porquê esse uso passou a ser considerado um problema em nossa sociedade, ainda está por ser contada, em especial para o caso brasileiro, e não será abordada mais do que de passagem no presente trabalho. Entretanto, seria ingênuo pensar que essa proibição adveio fundamentalmente de uma pressão social sobre os governos, em decorrência de significados negativos atribuídos pela sociedade aos usos de algumas substâncias. E, definitivamente, este não é o objetivo a que me proponho.
É preciso ter em mente a complexidade das sociedades atuais, principalmente no que diz respeito a decisões políticas e/ou econômicas, que é o caso da proibição de algumas substâncias psicotrópicas. Nesse sentido, é possível que não houvesse, à época da proibição no Brasil, uma cultura disseminada de oposição ao uso de tais substâncias. De fato, alguns trabalhos históricos acerca da proibição da maconha no Brasil referem que se tratava de uma planta fumada costumeiramente entre negros e índios de regiões do norte e do nordeste do país e que, a partir de uma série de relatos médicos essa prática foi enquadrada enquanto contravenção, de modo que não se tratou de uma questão debatida amplamente pela sociedade. A proibição ocorreu, assim, através de uma decisão “de gabinete” e, só depois se institucionalizou, a partir dessa perspectiva médica, o pensamento de que drogas como a maconha são, necessariamente, perniciosas e trazem abalos à vida do usuário. Ou seja, a proibição teria vindo antes da representação que a sociedade faz da substância, sendo esta representação mais uma decorrência do que uma causa da adoção da legislação. Essa hipótese me permite pensar na manutenção de tais políticas como possível a partir da reprodução de esquemas culturais que, uma vez institucionalizados, ou seja, cristalizados e transmitidos pelas instituições familiares, sociais e estatais, constituem uma realidade preexistente que fornece o ponto de partida das representações e dos significados que cada indivíduo produzirá sobre as práticas de uso de drogas na nossa sociedade.
Independente da origem da proibição, porém, o fato é que se institucionalizou um determinado pensamento acerca das drogas tornadas ilícitas. Neste trabalho, pretendo analisar esse aspecto: como a sociedade, ao se deparar com a proibição de certas substâncias, proibição esta motivada por discursos particulares (discursos médicos) e seletivos (pois promotores de certas características das drogas como determinantes do “ser” desses objetos), aderiu a tais discursos, reproduzindo-os e conferindo às substâncias em questão um significado possível (que passou a ser o significado “dado” culturalmente aos indivíduos), mas não o único. Utilizo, como já foi anunciado na introdução, as noções de representação seletiva e de estrutura prescritiva, buscando compreender esse processo. Não se trata, contudo, de pretender explicar, aqui, a origem da proibição de algumas drogas através de representações seletivas culturalmente constituídas no interior de estruturas prescritivas. Com certeza, a proibição se vincula a uma série de outros processos ligados à política internacional, interesses econômicos e corporativos (e à legitimação do saber médico) e a uma vasta gama de fatores que necessitariam de uma pesquisa histórica de peso a fim de serem melhor compreendidos. Meu objetivo é explicar, operacionalizando os conceitos de Sahlins, o modo pelo qual construções simbólicas institucionalizadas a partir de “conjuntos de saberes positivos”vieram a contribuir para a manutenção dessa cultura oficial e, também, o modo pelo qual sujeitos situados nessa cultura têm a possibilidade de reavaliar seus conceitos a partir da referencialidade de suas práticas e experiências.
Podemos, assim, pensando a partir desses conceitos apresentados por Sahlins, conceber como os eventos são inseridos em categorias preexistentes, passando o mundo a ser conhecido como instância lógica dos conceitos que fundamentam os sistemas simbólicos culturalmente construídos. De imediato, então, o simples exercício da linguagem já se apresenta como constituinte do ato de classificação simbólica por excelência, afinal, como nos diz Cassirer, “a linguagem não entra em um mundo de percepções completamente objetivas apenas para adicionar aos objetos - já dados e claramente distinguíveis uns dos outros – ‘nomes’ que seriam somente signos externos e arbitrários; ela própria é uma mediadora na formação dos objetos”, e Sahlins: “as categorias pelas quais a experiência é constituída não surgem diretamente do mundo, mas de suas relações diferenciais no interior de um esquema simbólico”.
Ora, os discursos, as definições e os sentidos atribuídos ao uso de psicoativos, se interpretados segundo essa linha de pensamento, dizem mais respeito ao esquema simbólico no interior do qual se produziram do que às substâncias elas mesmas enquanto objetos do mundo físico. Então, se “cada esquema cultural particular cria as possibilidades de referência material para pessoas de uma dada sociedade”, sendo que essas referências não são as únicas possíveis, podemos compreender como os mesmos psicotrópicos, utilizados em contextos simbólicos diversos, ensejam significados também diversos e mesmo “efeitos” diferentes em seus usuários. De outro modo, como explicar a inexistência de distúrbios sociais (sempre apontados, em nossa sociedade, pelos discursos médicos reproduzidos pelo senso comum, como inerentemente ligados ao consumo de drogas, pois advindos de propensões motivadas nos usuários por propriedades químicas dessas substâncias) em contextos de uso religioso, místico, sagrado, terapêutico ou produtor de laço social de psicoativos como, por exemplo, a maconha ou a ayahuasca?
Edward MacRae faz referência a diversos casos de uso desregrado de drogas que, uma vez em contato com o uso ritualizado do chá de ayahuasca, foram assumindo, no contexto de uma significação religiosa para o consumo da substância, características absolutamente diversas daquelas habitualmente relacionadas ao uso de psicoativos. Trata-se de casos de pessoas que, “com um passado de uso desregrado de drogas e com dificuldades de inserção numa sociedade que atravessa severa crise social, econômica e moral”, ao participarem das atividades de uma seita religiosa ligada ao uso do chá, passaram a contar com “um importante referencial moral”, iniciando um verdadeiro processo de “apaziguamento de tensões familiares”, no que constituem exemplos contundentes de um uso de uma substância psicoativa que, inserido em um esquema simbólico específico, contribui na consolidação de estilos de vida nada problemáticos. Como conclui MacRae, “o uso religioso do chá psicoativo ensejou a criação de instituições que provêm muitas pessoas com os arcabouços éticos, sociais e culturais, em torno dos quais construíram suas vidas” e “os diversos estudos antropológicos e históricos realizados sobre esse uso da bebida têm ressaltado a conduta pacífica e ordeira dos adeptos das diversas seitas, cujos valores básicos coincidem com aqueles considerados emblemáticos das sociedades cristãs ocidentais. Longe de levar a um uso abusivo e destrutivo de substâncias psicoativas, a tendência mais notada é a de promover estilos de vida recatados e austeros, voltados para o culto à espiritualidade e aos valores familiares e comunitários”.
Reflexões como essa nos levam a pensar no poder desses sistemas de classificação dos objetos e fenômenos da vida prática. Quer dizer, podemos pensar em como a posição relativa que o uso de drogas ocupa no sistema de classificação da nossa sociedade contribui decisivamente na constituição de situações de violência e no desencadeamento de processos conflituosos: a partir de tal perspectiva nos é possível considerar que o significado atribuído às práticas de uso de drogas interfere profunda e inevitavelmente na consolidação da violência inerentemente atribuída ao “mundo das drogas”, fazendo do estudo dos contextos socioculturais algo fundamental na compreensão desse fenômeno.
Mas vamos tomar mais de perto, para fins de análise, os discursos estruturais em vigência acerca das drogas e do seu uso nas sociedades ocidentais atuais.
O signo utilizado é “drogas”. Os objetos empíricos aos quais ele se refere são a maconha, a cocaína, a heroína, etc. Trata-se de objetos mais particulares do que o signo, que é amplo em demasia. Mas também, sob outro ponto de vista, esses objetos são mais gerais do que seus signos, já que apresentam, sob a forma de experiência, mais propriedades e relações do que podem ser escolhidas e valorizadas pelo signo correspondente, de modo que os discursos sobre as drogas não estão em condições de dar conta adequadamente dos objetos a que se referem. Assim, quando se fala em uso de maconha, se faz referência a uma série de efeitos mais ou menos objetivos que esta droga causaria. Contudo, essa diversidade de efeitos é extremamente ampla e não se restringe àqueles que são referidos como “os” efeitos do uso dessa substância, dificultando mesmo o apontamento daqueles que seriam os efeitos “principais”. Se somarmos a isso o poder de determinação contido nos múltiplos significados possíveis para essa prática (poder que interfere, como visto acima, diretamente sobre a experiência psicoativa que o usuário terá), chegamos a um quadro em que buscar os sentidos dos usos de drogas em análises químicas das substâncias reduz drasticamente a nossa real compreensão acerca do fenômeno.
Cada cultura, então, ao tomar a maconha como objeto de reflexão e, conseqüentemente, classificação, centra seu foco e promove, como qualidade definidora do fenômeno, alguns desses efeitos, a saber, expressamente aqueles que melhor se inserem no sistema classificatório já existente (construído, em nossa sociedade, a partir dos pareceres médicos e das análises bioquímicas). É esse sistema que vai operar como gerador de sentido para os objetos e práticas do mundo das ações, construindo a si mesmo sobre uma base lógica onde cada elemento se define em relação aos elementos já assentados e conceitualizados, que servem de fundamento para o pensamento. Como observa Sahlins, “sempre há um passado no presente, um sistema a priori de interpretação”.Se lembrarmos, então, que os primeiros discursos que assumiram um caráter estrutural acerca do uso da maconha foram os discursos médicos, poderemos conceber razoavelmente o modo como esses discursos se adequaram coerentemente a concepções anteriores (se fundamentando em uma idéia de Ciência enquanto conhecimento neutro e objetivo) e como eles vieram a influenciar em concepções futuras (inclusive, nas políticas que conduziram à criminalização daquilo que, até então, era compreendido como um hábito de negros e pobres de regiões afastadas). Sobre esse tipo de reflexão quanto aos modos pelos quais os pensamentos se institucionalizam e, uma vez institucionalizados, passam a fornecer os critérios e as categorias para o pensamento dos sujeitos em contato com aquelas instituições, é interessante reportar à leitura de Mary Douglas. Essa autora oferece elementos para a reflexão sobre a permanência das instituições e dos discursos e valores que, em dado momento da história de uma comunidade, se cristalizam e concretizam em suas instituições sociais.
Retomando uma perspectiva mais próxima de Sahlins, se poderia pensar nos modos pelos quais os discursos médicos se elevaram à condição de definidores de certos fenômenos, como, por exemplo, o uso de drogas, se pensarmos que, “agindo a partir de perspectivas diferentes e com poderes sociais diversos para a objetivação de suas interpretações, as pessoas chegam a diferentes conclusões e as sociedades elaboram os consensos, cada qual a sua maneira”. Essa percepção é importante para o presente trabalho que, no entanto, também se preocupa em procurar apontar as formas como os sujeitos reelaboram essa estrutura prescritiva de significados.
Maurício Fiore oferece, em um interessante artigo, uma reflexão bastante apropriada para o aprofundamento dessa discussão. Nesse texto, através de entrevistas com médicos, análises de publicações da grande mídia e de discursos diluídos na sociedade, o autor empreende um estudo sobre como o uso do termo “drogas” foi se consolidando, a partir de um cenário de disputa do significado do conceito, e assumindo um caráter definidor das representações feitas na nossa sociedade em torno das práticas de uso das mais diversas substâncias psicoativas. Assim, Fiore se refere, por exemplo, a como, nos discursos acerca das “drogas”, o uso do termo no singular operou sobre as representações feitas sobre as práticas a que os termos se referem, de modo que a pluralidade de substâncias, contextos e usos foram sendo reduzidos à “questão da droga”:
O singular indica que a experiência do dispositivo é maior do que o conjunto; a soma das partes, as substâncias psicoativas, é menor que seu conjunto, a questão da ‘droga’: carregada de negatividade intrínseca, a ‘droga’singularizada pode representar todo o complexo universo que envolve sua produção, distribuição e consumo.
Pensemos agora no que acontece com uma droga classificada, em nossa sociedade, na categoria “medicamento”. Pode ser, quem sabe, uma droga potente como o Prozac, ou mesmo a aspirina. A ingestão de substâncias como essas também produz uma série de “efeitos” no organismo. Um antidepressivo como o Remeron gera uma sonolência e uma afetação dos sentidos e capacidades motoras bastante comparáveis a certos quadros atribuídos ao uso de maconha. No entanto, as propriedades destacadas no discurso oficial acerca das drogas psiquiátricas são aquelas que melhor corroboram com a categoria na qual tais drogas estão inseridas, a categoria de medicamentos. As propriedades contraditórias com a classificação estabelecida são entendidas, no esquema simbólico, como “efeitos colaterais”, ou seja, como “acidentes” e não como “essência” da coisa. Voltando à maconha e, neste caso, também à heroína, sua classificação como “droga” impede que a atenção se ponha em outras de suas propriedades, notadamente as medicinais (tradicionalmente e mesmo já cientificamente comprovadas em diversos casos).
Por fim, apresento um exemplo ainda mais corriqueiro: o chimarrão. No Rio Grande do Sul o consumo dessa substância é tradicional, estando inserido, no esquema simbólico constituído na região, como um laço social entre indivíduos e grupos. Ora, a erva-mate apresenta propriedades estimulantes que alteram funções fisiológicas do organismo humano (o que a caracterizaria, segundo a definição canônica da Organização Mundial da Saúde, como uma droga) mas estas propriedades não são evidenciadas, na constituição cultural do significado do consumo do chimarrão, como propriedades definidoras do “ser” dessa prática, de modo que tomar chimarrão é, no sistema simbólico da cultura tradicional gaúcha, um costume, um laço social perfeitamente inserido e relacionado logicamente com outros conteúdos e práticas constituintes desse universo simbólico. Exemplos semelhantes abundam. Destaco o caso típico do vinho. Trata-se de uma bebida alcoólica, uma droga, portanto. No entanto, possui um uso religioso tradicional, tendo papel importante nos ritos cristãos. Em nossa sociedade, o uso do vinho nesses rituais não é classificado como um uso de droga e tampouco abundam registros de abuso da substância nesse contexto ritual. Afinal, opera aí, novamente, um código cultural, um sistema de significados que ultrapassa meras análises químicas e que compreende o uso em contexto ritual do vinho como um aspecto vinculado à categoria do sagrado e não a uma simples alteração da consciência. Se pensarmos no uso do haxixe em comunidades dos Himalaiase no uso da maconha em comunidades jamaicanas específicase em tribos do interior do Maranhão, poderemos verificar como estes usos estão, do mesmo modo, coerentemente posicionados nos esquemas simbólicos dessas populações, não constituindo, por não significarem, objetos associados a conflitos e rupturas no interior desses grupos.
Segundo Henman, “o contexto em que a maconha é mais consumida [entre os índios tenetehara] ocorre durante a realização de trabalhos que exigem esforços físicos. Acredita-se que a planta tem efeito estimulante, ajudando na execução das tarefas pesadas associadas às derrubadas e plantações”. À essa classificação do uso da maconha, tão diversa da concepção dominante na nossa cultura, se soma a significação conferida, por este mesmo grupo indígena, ao uso do tabaco em seus rituais de xamanismo: “o estado de transe – uma autêntica narcose, com o pajé caído duro no chão por um período de dez a vinte minutos – é atingido unicamente pelo uso do tabaco, sendo a fumaça engolida para o estômago, acompanhada de violentos tragos e gesticulações”.
Trata-se de exemplos contundentes de assimilação do uso de uma substância psicoativa a um esquema de significação culturalmente construído e bastante diverso daquele que a nossa sociedade estabeleceu (me refiro aqui, obviamente, ao esquema institucionalizado e dominante no nível discursivo). Como afirma, por fim, Henman, “ao rotular os índios tenetehara como meros ‘maconheiros’ [o que fazemos ao apreender suas práticas por meio dos nossos mecanismos de significação], perdemos a oportunidade de aprender uma lição sobre o uso adequado desta planta, de inestimável valor para a nossa civilização”.
Voltando a uma linha mais próxima de Sahlins, e pensando sobre o objeto deste trabalho, podemos dizer que, nas nossas sociedades complexas, o significado institucionalizado acerca do uso de drogas constitui o ponto de partida na constituição dos sentidos individuais dessa prática. Trata-se de um fenômeno enquadrado naquilo que Baratta chama de um “sistema fechado”:
“O sistema das drogas constitui um exemplo significativo de subsistema fechado. Uma de suas principais características é o fato de que os atores se condicionam reciprocamente, na sua atitude positiva com respeito ao status quo da política de drogas. A este condicionamento positivo se subtrai unicamente um grupo de atores: o que está constituído pelos drogaditos. A presença deste único grupo ‘desviado’, neste caso, os drogaditos (desviados com relação ao sentido da realidade aceita pelos demais), reforça o sistema fechado, aumentando sua capacidade de auto-reprodução”.
Baratta faz referência aos modos pelos quais, “no sistema da droga, a reação social criminalizadora produz por si mesma a realidade que a legitima” e, citando Robert K. Merton, procura dar conta “desse processo de auto-reprodução ideológica e material do sistema” que, ao sustentar uma determinada imagem da realidade, dá origem às políticas que operarão na “construção do problema social”, caracterizando um mecanismo correspondente a uma “profecia que se auto-efetiva”. Luiz Eduardo Soares parece também se apoiar nessa teoria quando analisa a trajetória do traficante Marcinho VP (assassinado na penitenciária em que cumpria pena, em 2003) e a forma como todos os atores sociais envolvidos na determinação do seu destino (ele próprio, seus parceiros, a mídia, a polícia) se conduziram de modo a reiterar as identidades e os significados construídos culturalmente, em um exemplo da auto-reprodução no nível da ação prática, a partir dos sistemas simbólicos, de uma estrutura prescritiva conformadora da realidade às suas representações. Deste modo, e voltando mais propriamente à reflexão sobre o uso de drogas, a ruína de vidas saudáveis, devida a essa prática, pode estar já anunciada em nossa cultura a partir da posição simbólica que tal comportamento ocupa no sistema de significado (o qual exerce poder sobre os esquemas de vida dos indivíduos, de modo a tornar fatos as suas representações). Assim, a ação prática dos sujeitos imbuídos desse sistema simbólico está orientada no sentido de realizar suas representações, ou seja, de produzir situações violentas associadas ao uso de drogas, de encarar tal prática necessariamente como nociva e problemática, de enxergar nos consumidores pessoas doentes ou criminosas, de projetar sobre a figura do comerciante dessas substâncias as mais pérfidas intenções, enfim, de atualizar tudo o que se concebe, no nível do conceito, como a “realidade” do fenômeno. A espiral de conflitos familiares, contravenções, violências e sofrimentos estaria, assim, já anunciada a partir da significação culturalmente dada a tais conteúdos. A profecia tende sempre a se auto-efetivar.
O significado do uso de drogas nas sociedades ocidentais atuais se constituiu, então, se a apropriação dos conceitos de Sahlins for adequada, a partir de uma representação seletiva dos significados possíveis para a compreensão dessa prática, tomada como objeto de reflexão e classificação. Conforme já mencionado, nos processos de representação seletiva um significado é posto em primeiro plano em relação a todos os outros significados possíveis. Assim, a significação do uso das drogas tornadas ilícitas enquanto uma prática ofensiva, tanto ao organismo do usuário quanto ao organismo social, significação esta que encontra seu apoio e sua história nos pareceres médicos do início do século XX, se sobrepõe, em nossa cultura, às significações que se referem a esse uso como uma prática terapêutica, lúdica, mística, introspectiva ou espiritual, caracterizando um processo de classificação no qual a aposta em certos atributos do objeto ou da prática, e a desconsideração “científica” de outros desses atributos, cristaliza como verdade uma possibilidade. Mas, como esses significados postos em primeiro plano se refletem nas práticas dos atores sociais, pois as orientam, eles acabam desencadeando uma série de conseqüências como, por exemplo, a estigmatização e marginalização dos usuários, a potencialização de conflitos, além de uma série de arbitrariedades e corrupções (internações compulsórias, pagamentos de subornos a policiais, etc). Há, além disso, uma marcante incoerência que se estabelece quando os esquemas simbólicos se concretizam nas práticas sociais e se evidencia a promoção de sentidos diversos no que se refere a outros psicoativos como, por exemplo, as bebidas alcoólicas. Mas de onde vem o sentido conceitual que acaba por engendrar essa cadeia de conseqüências lógicas?
O sentido conceitual é determinado, segundo Sahlins, de acordo com sua posição diferencial no esquema total de objetos simbólicos. Assim, o sentido de “uso de drogas” poderia ser determinado em relação à “não-uso de drogas”, construindo-se culturalmente a concepção de “alteração de consciência” (e aqui são particularmente notáveis as referências comumente feitas ao álcool, classificando-o como uma substância específica, em vez de incluí-lo na categoria “drogas”). A consciência alterada, enquanto construção cultural, será definida, pois, em relação a uma idéia de “consciência natural”, “não alterada”, ou seja, saudável. Logicamente, advirá desse construto a noção de uso de drogas como patologia individual e social. Em relação a esse ponto, o antropólogo Anthony Henman apresentou, em recente simpósio realizado nas dependências da Universidade de São Paulo, uma interessante crítica à criação de oposições entre “estados de consciência”. Segundo ele, não há nada que, necessariamente, nos faça crer nessa dualidade, de modo que a consciência humana poderia ser apreendida conceitualmente a partir de um monismo, ou seja, de uma unidade conceitual em vez de uma oposição arbitrária entre “natural” e “alterado”.
III.
Mas então, retomando a análise, se a cultura tem, a partir da operação que faz de sistemas de classificação produtores de significados, um poder definidor das concepções dos indivíduos e grupos que a constituem, como pode o uso de drogas ilícitas ser tão disseminado no seio de sociedades que o classificam como nocivo, perturbador da ordem e gerador de violência e, fundamentalmente, como pode se produzir, no interior dessas mesmas sociedades, discursos tão variados e mesmo antagônicos ou contrários aos condicionamentos culturais?
Sahlins afirma que as classificações culturalmente construídas podem, ou não, ser definidoras da experiência dos indivíduos. Se pensarmos nisso tendo em vista o uso de substâncias psicoativas, conceberemos que nada garante que os indivíduos utilizem as categorias existentes dos modos prescritos, e isso ainda que os significados do uso de drogas estejam ligados, em nossa sociedade, a uma estrutura prescritiva. Assim, “o signo, enquanto sentido, se torna duplamente arbitrário na referência: ao mesmo tempo uma segmentação relativa e uma representação seletiva”,o que ocorre tanto no nível da cultura quanto no da possível ressignificação desses conteúdos por parte do indivíduo em contato direto com o mundo. Nesse sentido, meu foco se dá sobre as representações seletivas que as sociedades ocidentais atuais engendraram acerca dos psicotrópicos e de seus usos, mas, também, se põe sobre os modos como esses significados por vezes se transformam ao entrar em contato, por meio da experiência de indivíduos e grupos, com as determinações do mundo empírico. Quer dizer, trata-se de oferecer elementos para se pensar, simultaneamente, nas formas pelas quais significados culturalmente dominantes se reproduzem e se disseminam no interior da nossa sociedade e nas maneiras através das quais os sujeitos, em suas trajetórias de vida, se relacionam com esses significados e os confrontam com suas experiências, por vezes reformulando-os. Ou, nos termos de Sahlins, trata-se de pensar na “existência e na interação dual entre a ordem cultural enquanto constituída na sociedade e enquanto vivenciada pelas pessoas: a estrutura na convenção e na ação, enquanto virtualidade e enquanto realidade”.
Quando as pessoas colocam em ação seus conceitos e categorias, estes entram em relação ostensiva com um mundo de razões próprias, um mundo “que pode escapar facilmente dos esquemas interpretativos de um dado grupo humano”. Por isso, Sahlins afirma que “a práxis é um risco para os significados dos signos”, ou seja, o mundo pode negar os conceitos a ele indexados. Assim, me valendo de algumas assertivas apropriadas pelo senso comum dos discursos “especializados” sobre uso de drogas, o consumo de maconha pode, “surpreendentemente”, não significar “a porta de entrada para o uso de outras drogas”, o uso de psicoativos pode, na prática, não constituir “um caminho sem volta” e, pasmem, o uso de drogas pode não ser, intrinsecamente, uma prática geradora de violência, conflitos sociais e familiares e, portanto, um flagelo em bases objetivas. Trata-se, aqui, de ter em mente aquilo que Marshall Sahlins chama de “reavaliação funcional das categorias”, um processo que, de certa forma, já vem ocorrendo em nossa sociedade, mesmo em nível estrutural, haja vista se tomarmos em conta que, em 1961, quando da proscrição da maconha pela Organização das Nações Unidas, esta foi qualificada como droga de alta periculosidade e potencial ofensivo, ao passo que, hoje em dia, diversos países, reconhecendo seu valor terapêutico e seu estatuto de “droga leve”, já realizaram substanciais alterações em suas legislações acerca do consumo desse psicoativo.
Retomando, em última análise, o objetivo primordial deste estudo, reitero a possibilidade de cada indivíduo, mesmo no interior de uma estrutura prescritiva, operar com os objetos simbólicos, no nível da ação prática, levando em consideração o seu “interesse” (termo utilizado por Sahlins) em tais objetos, o que vem a influenciar na sua construção pessoal desses objetos, de modo a que poderão eles vir a ocupar diferentes posições nos esquemas de vida dos indivíduos e dos grupos que eles constituem a partir desses interesses e esquemas. Escreve Sahlins: “do modo como for implementado pelo sujeito ativo, o valor conceitual adquire um valor intencional, que pode ser diferente do seu valor convencional”. Ora, daí os usos de drogas que parecem contradizer as determinações convencionais (subculturas praticantes de usos religiosos, recreativos, socializadores, a droga como signo de poder, força, paz, tranqüilidade, bem-estar... uma série de significados “inesperados”, que se constituem a partir das experiências de sujeitos e grupos que ressignificam conteúdos específicos no interior de um sistema simbólico convencionalizado). Faça-se, no entanto, a ressalva de que essas ressignificações “dependem das possibilidades dadas de significação, mesmo porque, de outro modo, seriam ininteligíveis e incomunicáveis”. Quer dizer, os sujeitos não engendram significados a partir do nada, de modo que é o substrato de sentido conferido pela cultura que lhes concede o universo de sentidos possíveis na significação dos objetos e práticas. Assim, significados não convencionais para usos de drogas tornadas ilícitas em nossa sociedade poderiam estar se constituindo a partir da observação de usos convencionais de outras substâncias (bebidas, remédios, etc). Ou seja, o sentido “inesperado” está, na verdade, sendo apropriado e tendo seu substrato no próprio esquema cultural dominante. Aí está, ainda que de relance, a expressão do mecanismo de permanência na mudança, ou o modo pelo qual “o antigo sistema é projetado adiante sob novas formas”. Trata-se, entretanto, da operação, por parte dos indivíduos, de poderes criativos que, conforme Sahlins, não estão suspensos simplesmente pela ação significativa dos mecanismos culturais, mas, ao contrário, e a experiência comprova, encontram-se plenamente ativos, pulsantes e plenos de sentido próprio.
IV.
Uma vez isso compreendido, começa a se desfazer a idéia monolítica da cultura como determinante absoluto de significados (ela seria melhor descrita como determinante de possibilidades de significados) e, ao mesmo tempo, a idéia de que legislações proibitivas e práticas repressivas possam “sanar o mal” do uso de drogas. Primeiro porque a compreensão dos modos pelos quais interpretações que se pretendem definições são construídas no interior de sistemas simbólicos de classificação coloca em xeque a própria idéia de uso de drogas como prática intrinsecamente causadora de conflitos e violências e, segundo, porque essa mesma compreensão da construção de sentidos permite vislumbrar a simplificação que se faz quando se classifica como crime uma prática de múltiplos significados.
O problema maior, contudo, parece residir principalmente nas conseqüências dessa criminalização do uso e da venda de certas drogas: a constituição das organizações criminosas que se financiam e se armam a partir do comércio das substâncias proscritas, gerando uma série de danos sociais que ultrapassam em muito os danos que se podem relacionar diretamente ao consumo de psicotrópicos. Como aponta Alba Zaluar, “o crime organizado desenvolveu-se nos atuais níveis porque tais práticas socialmente aceitáveis [o jogo, as drogas e a diversão] e valorizadas foram proibidas por força da lei, possibilitando níveis inigualáveis de lucros a quem se dispõe a negociar com esses bens”. Assim, “as taxas de crimes violentos aumentaram em todos os países em que o combate à droga apela para a repressão, inclusive no Brasil”e, como arremata a autora, a grande questão está em “analisar como a criminalização de um hábito ou gosto individual – ou seja, uma ação arbitrária e ilegítima do Estado [...] aprofunda a revolta e as carreiras criminosas dos jovens usuários de drogas”.
Então, no nosso sistema social, a legitimidade conferida ao Estado para coibir o uso dessas substâncias pode ser entendida como uma legitimidade para a imposição de um significado convencional a todos aqueles que, por ventura, sejam flagrados “significando diferentemente” o uso de drogas, o que caracterizaria, segundo minha interpretação, uma estrutura prescritiva e um sistema fechado. Trata-se, creio, de uma conclusão de certo modo patética, mas que parece seguir logicamente da análise até aqui realizada e que se confirma empiricamente a partir da total incompreensão demonstrada, até então, por grande parte das autoridades constituídas acerca das especificidades de significados dos usos de drogas e das formas pelas quais esses significados se constroem, no âmbito cultural e no âmbito individual, pela constante confrontação de conceitos e classificações simbólicas com práticas, vivências e interesses constitutivos dos esquemas de vida dos indivíduos e dos grupos no interior de uma sociedade.
Deste modo, o significado do uso de drogas tem sido expresso nas sociedades ocidentais atuais como efeito direto de propriedades objetivas das substâncias em questão, ignorando o valor relativo do sentido dado pela sociedade ao fenômeno. Como escreve Gilberto Velho,
“a própria noção de tóxico e o conceito de drogas são altamente problemáticos e, dependendo do critério e da posição do investigador, podem abarcar desde a heroína ao papo-de-anjo. [...] existem n maneiras de utilizar as substâncias, em função de variáveis culturais e sociológicas. Estas não só se somam, como complexificam as distinções que possam ser registradas ao nível da análise bioquímica”.
Nesta mesma linha segue Espinheira quando afirma, enfaticamente, que “as drogas não têm o mesmo efeito para pessoas socialmente diferentes!”e, depois, acrescenta que “o uso de drogas, como estilo ou ethos, depende mais do usuário do que da droga que usa, e isso significa que não se pode atribuir à droga uma autonomia em relação ao indivíduo ou mesmo ao contexto social, mas, ao contrário, perceber o indivíduo e o seu contexto para compreender o tempo e os espaços das drogas em suas vidas”. Espinheira prossegue em sua argumentação, oferecendo uma série de histórias e relatos nos quais “a droga é a mesma, no caso a maconha, mas os motivos para o uso e as razões dos atos praticados são completamente diferentes”, concluindo que “são as pessoas e sua subjetividade, na objetividade da realidade social e não as drogas [que conferem] a suposta autonomia do efeito delas”e também que “os efeitos das drogas podem ser quimicamente parecidos, mas são culturalmente diferentes, o que equivale dizer, socialmente diferenciados porque as ações que deles resultam não têm o mesmo significado e, assim sendo, são também quimicamente outros”. De minha parte, penso que, ao desconsiderar essas especificidades e essa pluralidade de sentidos e contextos envolvidos na constituição do que, afinal, significa o uso de drogas, se atendo tão somente aos significados institucionalizados a partir de uma perspectiva particular, a perspectiva médico-legal, as políticas públicas criminalizantes da produção, da distribuição e do uso das drogas tornadas ilícitas operam no sentido de fortalecer a cadeia de violências, conflitos, arbitrariedades e corrupções diversas nos sistemas policial e judiciário, afastando-se sensivelmente daquele que deveria ser o papel do Estado e contribuindo decisivamente no agravamento de um problema que é, em última instância, fruto de uma construção particular das sociedades contemporâneas. Como escreve Baratta, “a história das drogas, anterior à economia capitalista é, com raras exceções, um aspecto normal da história da cultura, da religião e da vida cotidiana em toda sociedade: não é a história de um ‘problema’”.
Quer dizer, é à incompreensão de que os fenômenos devem ser pensados a partir da relação entre os acontecimentos no mundo e um sistema simbólico prescritivo de significados, por meio de esquemas classificatórios das práticas e objetos, que se poderia atribuir grande responsabilidade sobre a violência crescente que se associa comumente a certas características intrínsecas ao “mundo das drogas” (abstração que conjuga produtores, distribuidores e usuários de substâncias proibidas). E cito, por fim, novamente Sahlins, quando este afirma que “apesar de um evento, enquanto acontecimento, ter propriedades objetivas próprias, [...] não são essas propriedades, enquanto tais, que lhe dão efeito, mas a sua significância, da forma que é projetada a partir de algum esquema cultural”.
Trata-se, então, a meu ver, de buscar, o Estado e a sociedade, no que se refere à abordagem dessa questão por meio de políticas públicas, a partir de uma compreensão mais apurada acerca do universo de sentidos envolvidos nos fenômenos do uso de drogas, a construção de modelos mais adequados que dêem conta dessa complexidade e, a partir do abandono de abordagens moralizantes e repressivas (que só maximizam conflitos e incompreensões diversas), se adotem formas de regulamentação mais condizentes com a multiplicidade de significados com que opera o ser humano na constituição do vasto espectro da sua liberdade existencial. Compreendidos os problemas, para além das superfícies, trata-se, pois, de constituir os mecanismos mais adequados para enfrentá-los, sob a forma de políticas públicas que respeitem a diversidade e a dignidade humanas e que, minimizando conflitos, maximizem possibilidades.
O uso de drogas, no contexto das sociedades ocidentais contemporâneas, tem sido sistematicamente condenado e apontado como gerador de uma série de desordens sociais e de conflitos violentos. Os discursos veiculados na mídia seguidamente fazem referência a essa prática como causadora de violência, seja a violência perpetrada pelas organizações criminosas do tráfico de drogas, seja pela associação do uso dessas substâncias com a aquisição de comportamentos agressivos. Esse é o significado institucionalizado em nossa sociedade acerca dos fenômenos de uso das drogas tornadas ilícitas. Atentar, contudo, para o mundo empírico e para outros usos dessas substâncias, em contextos diversos e com significados por vezes bastante diferentes dos acima mencionados nos fez considerar, em conjunto com uma leitura particular da obra de Marshall Sahlins (e apoiando-se em afirmações de outros autores), a multiplicidade de significados possíveis no entendimento e compreensão dessa prática.
Assim, penso ter contribuído minimamente para uma reflexão sobre a forma como nossa sociedade “oficializou” e mantém (ao menos no plano virtual ou no plano do discurso institucional) uma representação particular como sendo definidora do “ser” de uma prática que é, em si mesma, um vasto campo de possibilidades simbólicas e interpretativas. Ao mesmo tempo em que, no interior dessa mesma sociedade (como também em outras), sujeitos ativos constantemente ressignificam tais conteúdos a partir de suas experiências, explorando outras dessas possibilidades também dadas em nosso espectro cultural.
No horizonte dessa análise também esteve sempre presente a idéia, expressa por Sahlins, de se pensar nas relações que se estabelecem entre a permanência e a mudança de conteúdos simbólicos (e de práticas deles decorrentes) no interior de um mesmo sistema cultural. De fato, no que se refere aos fenômenos do uso de drogas, creio serem eles significativos dessa coexistência, explicitada na diversidade de concepções diluídas por toda a sociedade e, ao mesmo tempo, na presença de um discurso revestido de autoridade pela cultura oficial, discurso este que, respaldado pelas instituições mantenedoras, reprodutoras e divulgadoras da ordem cultural, e pretensamente objetivo e verdadeiro (portanto, “legítimo”), constitui, no entanto, uma das possibilidades de significação conferidas aos sujeitos por esta mesma ordem.
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