Saturday, June 18, 2005

Carta-resposta ao panfleto “A juventude não precisa de drogas”

A gente não quer só comer
A gente quer prazer pra aliviar a dor

Comida – Arnaldo Antunes

Têm circulado no Campus do Vale da UFRGS alguns cartazes e panfletos que trazem, como ponto forte, a chamada: “A juventude não precisa de drogas”. Este panfleto, marcado pela desinformação e por uma retórica ultrapassada e preconceituosa, se refere a um “ato cujo eixo foi a liberalização do uso de drogas”, e que teria sido promovido pelo DCE. Bem se vê que os autores pouco sabiam acerca da natureza e das motivações desse evento: primeiro porque se tratava, não de um ato, mas de uma reunião, que visava discutir temas centrais concernentes à política de drogas vigente no Brasil e suas conseqüências sociais, seja para usuários, seja para não-usuários de drogas, já que essa questão não se restringe às substâncias em si, mas envolve inúmeros aspectos da realidade do nosso país, como desigualdade social, violência urbana, saúde pública, direitos humanos, entre outros. Segundo porque “informaram” que o DCE havia promovido o “ato”, ignorando que, na verdade, a reunião foi organizada por um grupo de universitários que pesquisam a complexidade da questão das drogas no Brasil (grupo este que não faz parte e não mantém relações de qualquer natureza com a atual gestão do DCE). O motivo por trás da reunião, ao contrário do que sugerem as patéticas afirmações contidas no panfleto, foi identificar, no meio acadêmico e na sociedade como um todo, pessoas interessadas no debate e na reflexão mais aprofundada sobre a temática das drogas e suas implicações políticas e sociais. O DCE, procurado pelo grupo idealizador do evento (constituído por estudantes da Universidade), cedeu o espaço da sua sede para a realização do mesmo. Afinal, esta deve ser a postura do Diretório Central de Estudantes quando procurado por um movimento social organizado, ainda mais quando composto por estudantes desta universidade.

Da reunião realizada no dia 7 de maio surgiram duas instâncias de reflexão e ação sobre a questão das drogas no Brasil: o movimento Princípio Ativo - por uma outra política de drogas, e o NESP - Núcleo de Estudos Sobre Psicotrópicos (nenhum deles ligado ao DCE da UFRGS). O movimento Princípio Ativo considera que não existe, como dito no panfleto, “a droga” (um ente maligno e necessariamente nocivo à humanidade), mas sim “as drogas”: um amplo conjunto de substâncias, algumas lícitas e outras ilícitas (determinações estas que satisfazem interesses políticos e econômicos), e que não são, em si mesmas, portadoras de uma essência boa ou má. O movimento Princípio Ativo concorda que “a droga não é sinônimo de liberdade”, mas defende incondicionalmente o direito inalienável de gestão do indivíduo sobre seu próprio corpo, cabendo unicamente a ele, e não ao Estado ou a quem quer que seja, a decisão acerca do que ingere e consome. E justamente porque “os valores movimentados pelo narcotráfico perdem apenas para o petróleo e as armas”, é que o Princípio Ativo acredita na importância da discussão e da reflexão sobre a política de drogas em vigência no Brasil, na perspectiva de uma alteração radical no viés proibicionista, por crer que os danos causados pela proibição das drogas ultrapassam, em muito, os danos causados pelas próprias substâncias. É difícil compreender, portanto, por que as pessoas que assinaram o panfleto consideram irrelevante a discussão sobre esse assunto, já que elas mesmas reconheceram a magnitude e o poder que o narcotráfico adquiriu, beneficiado, dentre outras coisas, pela proibição do uso e do comércio de drogas. Ora, que lógica absurda é esta professada pelos autores do panfleto, que identificam na legalização das drogas um interesse do narcotráfico? Não só a proibição engendra a ascensão do narcotráfico, como também a corrupção nas esferas legais, policiais e judiciárias. Esse parece, ainda, um tema menor?

É no simplismo de sentenças como “para o traficante, o jovem não é nada mais que ‘bucha de canhão’ nas bocas de fumo” que se percebe a falta de densidade e profundidade do panfleto em questão. Caracterizar o traficante como “o vilão da história”, sem buscar uma definição mais clara acerca do que exatamente vem a ser o “traficante”, é situar o debate em uma perspectiva branca e de classe média, ignorando a realidade brasileira, marcada por profundas desigualdades sociais. Na atual conjuntura sócio-econômica, tais desigualdades não abrem muitas possibilidades ao jovem pobre do morro além de um emprego no mercado das drogas. Culpabilizar esse soldado raso do narcotráfico pelas mazelas que este gera é fechar os olhos para a real dimensão do problema: se o narcotráfico movimenta tanto dinheiro (como bem reconheceram os autores do panfleto), porque não temos palacetes nas favelas? Ou não seria justamente a proibição das drogas (e a expiação da responsabilidade da sociedade novamente sobre o negro pobre do morro) que estaria a viabilizar a manutenção desse jogo perverso de desigualdade, corrupção generalizada, lavagem de dinheiro, hipocrisia e cinismo? Não percebem o papel que os dólares do narcotráfico cumprem na versão contemporânea do processo de acumulação de capitais, e nem notam que o dinheiro da narcoburguesia financia até mesmo o programa de privatizações na América Latina. Quando os autores do panfleto referem que “o fim dos jovens que se envolvem com a droga e o tráfico acaba sempre na morte, na guerra do tráfico, em chacinas ou nas mãos da polícia”, demonstram ignorar que não é o uso de drogas o responsável por esse fim, mas toda uma série de problemas derivados da desigualdade social, do preconceito étnico e, principalmente, da transposição do uso e do comércio de drogas para a esfera da ilegalidade. Então, mantém-se a percepção de que a questão das drogas é uma questão menor?

Não se trata aqui de desmerecer as legítimas reivindicações por geração de empregos, educação pública de qualidade e reforma agrária, mas sim de esclarecer que a problemática das drogas merece, sem dúvida alguma, maior atenção por parte da sociedade. Parece que, na ânsia por contestação (talvez dirigida particularmente ao DCE), os autores desse panfleto acabaram fragmentando lutas afins e semeando a discórdia e a desinformação por meio de um texto rançoso, repleto de chavões e que, no fundo, mostra inúmeros preconceitos e um conhecimento bastante superficial da realidade brasileira.

Cabe acrescentar que o movimento Princípio Ativo não se constituiu para afirmar que a juventude precisa de drogas, tampouco para incentivar o consumo e o tráfico dessas substâncias, mas para produzir reflexão e informação sobre o assunto, de forma embasada e não-preconceituosa. Assim, o Princípio Ativo reitera a importância de se discutir um assunto de tal relevância para a sociedade, no interior da universidade, pois a consideramos como espaço privilegiado para a produção de conhecimento capaz de orientar a elaboração de políticas públicas pautadas no respeito aos direitos humanos e à cidadania. Neste sentido, nós, do Princípio Ativo, agradecemos o apoio concedido pelo DCE, o qual demonstrou, nessa questão, uma acurada compreensão acerca de um dos grandes problemas enfrentados atualmente pelo Brasil, bem como aos mais de oitenta estudantes desta universidade e de outras instituições, que atenderam ao chamado para o debate deste importante tema, lotando o salão do Diretório Central de Estudantes da UFRGS em um sábado de frio e chuva.

O resultado da política proibicionista, aliada a um modelo econômico de caráter excludente, é o que vemos diariamente: jovens sem perspectivas engrossando as fileiras do tráfico de drogas; jovens usuários forçados a se envolver com a criminalidade; abusos e arbitrariedades diversas por parte da polícia e das autoridades; uma cadeia de perversidades chanceladas por uma política de Estado completamente equivocada. A lógica da guerra às drogas já provou, há muito, o seu completo fracasso. Uma guerra bancada pelos EUA, com nítidos interesses geopolíticos, onde quem morre são sempre os mesmos: jovens, na sua maioria negros e pobres, das periferias das grandes cidades do Brasil e da América Latina.


Movimento Princípio Ativo: principioativo.rs@gmail.com

Núcleo de Estudos Sobre Psicotrópicos: nesp.rs@gmail.com

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